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Crítica | Fargo – 5ª Temporada

Fugindo do passado.

por Ritter Fan
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  • Leiam, aqui, as críticas do filme e das demais temporadas. 

Lembro-me distintamente que, quando uma série de TV baseada no sensacional longa Fargo, dos Irmãos Coen, foi anunciada, minha reação foi de absoluta dúvida, especialmente porque a dupla criativa original não teria qualquer envolvimento e porque quem capitanearia a produção seria um tal de Noah Hawley, então quase que completamente desconhecido. No entanto, bastou eu assistir The Crocodile’s Dilemma, o episódio piloto da série, para que eu não só mudasse de ideia, como, ato contínuo, decretasse a primeira temporada uma das melhores séries de 2014. Inspirada no filme, mas apenas tangencialmente relacionada a ele, Hawley soube construir personagens e narrativa estupendas que funcionou tão bem na telinha que os próprios Irmãos Coen ficaram surpresos e passaram a ser os produtores executivos das temporadas posteriores, uma inegável chancela de qualidade.

E o melhor é que o formato de antologia, com cada ano contando uma história diferente e (quase completamente) desconectada das demais, permitiu que Hawley trabalhasse temas e elencos completamente diferentes, trafegando até mesmo pelo sobrenatural e pela abordagem de época, sem nenhum receio de subverter sua própria fórmula de sucesso e consistentemente entregando temporadas repletas de significados, críticas e comentários sociopolíticos. Ajudou muito, também, a falta de pressa – e de pressão – do FX para que Hawley soltasse novas temporadas, deixando o roteirista e diretor trabalhar no seu ritmo, sem afobações. Se a primeira e segunda temporadas vieram em anos consecutivos, 2014 e 2015, a terceira só chegou na televisão em 2017, com a quarta e certamente a mais diferente de todas em 2020. Quase exatamente três anos depois, eis que mais uma temporada é lançada com mais um elenco sensacional e uma história novamente bem diferente das demais que se passa entre Minnesota e Dakota do Norte na época mais próxima do presente de todas até agora, o ano de 2019, lá pela metade do até agora único mandato presidencial de Donald Trump.

Essa localização temporal é o pano de fundo da temporada e, mesmo que talvez “date” muito firmemente a temporada, os comentários que ela faz à radicalização de posturas, à estagnação de pensamento, à criação de milícias, ao conservadorismo extremo de base religiosa embrenhado na psiquê de boa parte dos cidadãos dos EUA (e não só de lá, vale dizer) têm claros paralelos com a referida presidência, pelo que faz pleno sentido que ela seja usada dessa forma, ainda que, claro, esse tipo de postura venha de muito antes, não exatamente se relacionando com um líder específico da nação, mas sim como algo mais holístico, amplo e histórico que é difícil apontar e que eu não tenho intenção alguma de abordar com maior profundidade aqui. O que realmente importa é que Hawley faz comentários relevantes e traz à tona, sem se preocupar em ser sutil, algumas doenças que infectam profundamente o país e que correlacionam-se com as de outros países pelo mundo.

Para fazer isso, o  showrunner começa de forma pequena até, transformando uma reunião escolar em Scandia, Minnesota, em que a dona de casa, mãe e esposa Dorothy “Dot” Lyon (Juno Temple) participa, em um caos que inadvertidamente à leva a uma noite na cadeia que deflagra a violenta, mas lenta revelação de seu passado sombrio que se relaciona com o rancheiro e xerife Roy Tillman (Jon Hamm), do condado de Stark, em Dakota do Norte. Não tenho intenção de entrar em detalhes, pois um dos atrativos da série é a cadência como tudo vai aos poucos sendo explicado, mas basta dizer que Dot não é quem diz ser e sua pacata vida de casada há 10 anos com o amoroso e respeitoso Wayne Lyon (David Rysdahl), que levou ao nascimento de sua filha Scotty (Sienna King), apesar de genuína, é também um disfarce que esconde seu passado e uma natureza que faz Dot ser muito mais do que uma mulher que toda manhã faz o café para a família.

Colorindo essa premissa misteriosa e fascinante que toca em traumas do passado, posturas radicais de “macho dominante” que só sabe citar versículos da Bíblia para justificar seus atos que submetem as mulheres à sua vontade e sua paranoia sobre interferência de governos em seu cotidiano, há, também, a magnética presença de Lorraine Lyon (Jennifer Jason Leigh), a bilionária mãe de Wayne que amealhou sua fortuna criando um império que coleta e cobra dívidas, outra característica de uma sociedade doente, que desconfia dos problemas que Dot passa a enfrentar, mas que consegue enxergar nela alguém que tem muita coisa em comum com ela, a policial endividada Indira Olmstead (Richa Moorjani) que percebe com mais clareza que Dot não parece ser apenas quem diz que é e, finalmente, o misterioso – e, sob todos os aspectos, sobrenatural – mercenário galês Ole Munch (Sam Spruell), contratado por Roy para localizar Dot, o completo “louco varrido”, mas fenomenal personagem, da vez. O ecossistema complexo criado por Hawley com sua rede de personagens interconectados é prazeroso de se assistir, especialmente quando notamos que cada um tem seus próprios problemas, suas próprias inseguranças e suas próprias dúvidas, algo que fica evidente quando vemos a vida doméstica de Indira e seu marido inútil que só sabe gastar dinheiro que não tem e não gera ou quando vemos a angústia de Gator Tillman (Joe Keery), filho mais velho de Roy, em sua eterna tentativa de se mostrar valioso para o pai.

Obviamente, porém, que os grandes destaques ficam mesmo com os personagens de Temple, Leigh e Hamm, três escalações mais do que inspiradas da produção. A atriz britânica que recentemente brilhou em Ted Lasso, faz algo que é muito raro em um trabalho dramático, mas que é essencial para a temporada funcionar: sua atuação dupla, ou seja, como esposa pacata e como sobrevivente capaz de tudo para proteger quem ama é meticulosamente feita para não convencer completamente em nenhuma dessas duas frentes. E não, com isso eu não quero de forma alguma dizer que Temple não fez um bom trabalho. É justamente o oposto. Ela estabelece a humanidade de sua personagem, seja manejando uma batedeira, seja um machado. Dot é falha nos dois lados dessa moeda, pois ela vive com medo e, quando seu passado finalmente a encontra, esse seu medo é materializado em uma espécie de ação reflexiva exagerada, secreta, repleta de mentiras e de uma culpa que ela sente apesar de, claro, não ter culpa alguma do que aconteceu com ela em sua outra vida. Ela é uma vítima que se recusa a se vitimizar e que faz de tudo para resolver seus problemas sozinha, sem envolver mais ninguém. Mesmo que muitas de suas ações pareçam recriações adultas do que vemos em Esqueceram de Mim – temos que lembrar que Fargo sempre refestelou-se do cartunesco, do farsesco, pelo que essa correlação definitivamente não é sem querer -, seu drama é sério, profundo e, sim, reflete, de uma maneira ou de outra, o drama de muitas e muitas mulheres pelo mundo.

Leigh e Hamm, por seu turno, trabalham com bem menos sutileza, sempre baseando-se em arquétipos. Novamente, isso não é demérito, até porque os dois atores conseguem manobrar o caricatural a seu favor e construir personagens aterrorizantes que se complementam, mas que são também muito diferentes entre si. Lorraine é a empresária pragmática, insensível e sem escrúpulos que só pensa nela mesma até notar que, mesmo desgostando da nora, tem muito mais em comum com ela do que com Roy, que é, por assim dizer, uma versão extrema e sem sofisticação de Don Draper que Hamm constrói como a confluência odiosa de muito do que está errado no mundo e cujo final, na temporada, é extremamente satisfatório, daqueles que fazem o espectador abrir um enorme sorriso. Em outras palavras, a monstruosidade de Lorraine é relativa, mas a de Roy é absoluta e a relação entre eles, com Dot no meio, é de desprezo mútuo, mas com Lorraine jogando um jogo bem construído, bem pensado, enquanto que Roy não é muito mais do que um louco que quer recriar Waco.

Noah Hawley, portanto, retorna com força total à série que o revelou para o mundo e que ele continua cuidando carinhosamente a cada nova temporada. O quinto ano reverte a uma estrutura mais familiar para a série do que a temporada anterior, mas é, também, a mais desconectada da “mitologia” original que sempre perpassou as temporadas. Mas o que realmente importa é o quanto o showrunner, no ano em que enveredará pelo horror espacial com sua série dentro do universo Alien, consegue mais uma vez acertar em cheio na forma como coloca o dedo no pulso da (in)civilização moderna.

Fargo – 5ª Temporada (Idem – EUA, de 21 de novembro de 2023 a 16 de janeiro de 2024)
Criação e showrunner: Noah Hawley
Direção: Noah Hawley, Donald Murphy, Dana Gonzales, Sylvain White, Thomas Bezucha
Roteiro: Noah Hawley, Bob DeLaurentis, April Shih, Thomas Bezucha
Elenco: Juno Temple, Jennifer Jason Leigh, David Rysdahl, Joe Keery, Lamorne Morris, Richa Moorjani, Sam Spruell, Dave Foley, Sienna King, Jon Hamm, Lukas Gage, Nick Gomez, Jessica Pohly, Rebecca Liddiard, Michael Copeman, Kudjo Fiakpui, Jan Bos, James Madge, Conrad Coates, Devon Bostick, Brendan Fletcher, Jason Schwartzman, Kari Matchett
Duração: 471 min. (10 episódios)

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