- Contém spoilers. Leiam, aqui, a crítica do filme original e, aqui, as críticas das temporadas anteriores.
Assistir filmes como Cidadão Kane, O Iluminado, 2001: Uma Odisseia no Espaço, O Grande Hotel Budapeste, Sangue Negro, Três Homens em Conflito, dentre outros, e não admirar a simetria de suas imagens é simplesmente estar perdendo grande parte da experiência que tais obras (primas) proporcionam, afinal, grandes diretores se preocupam não somente com a substância, como, com a forma e, em algumas ocasiões, mais com essa segunda. Quem já assistiu sequer um capítulo de Mad Men, Better Call Saul ou Fargo sabe muito bem que tais séries não se resumem apenas à história a ser contada e sim com a maneira como ela é apresentada. Dito isso, como nosso editor, Ritter Fan, bem disse, elas são comandadas pela santíssima trindade da televisão atual: Matthew Weiner, Vince Gilligan e Noah Hawley, três realizadores que deixariam Orson Welles e Kubrick orgulhosos.
Mas o que a simetria tem a ver com The Principle of Restricted Choice? Por que ela é tão importante? Pois a trama estabelecida nesse episódio é toda elaborada através dela, com a imagem refletindo perfeitamente o roteiro de Hawley.
Após a morte de seu padrasto, a policial, Gloria (Carrie Coon), dá continuidade à investigação, descobrindo algumas informações que podem jogar uma luz no porquê da morte do senhor de idade. Enquanto isso, Emmit Stussy (Ewan McGregor), ao lado de seu sócio Sy (Michael Stuhlbarg) precisam lidar com a ameaça apresentada por V.M. Varga (David Thewlis), que desde já começa a interferir em seus negócios, colocando em prática o que dissera em The Law of Vacant Places. Do outro lado, temos Ray, que junto de sua namorada/ noiva/ parceira no crime (depois de jogarem um ar-condicionado na cabeça do sujeito), Nikki (Mary Elizabeth Winstead), planejam, mais uma vez, conseguir o selo da casa do irmão rico. Evidente que, para os personagens principais, nada corre conforme o planejado.
A simetria desse segundo episódio da temporada se apresenta em diversos níveis e com praticamente todos os personagens de destaque da obra. Para começar, peguemos os dois irmãos interpretados por McGregor: ambos são controlados por seus parceiros, que moldam suas linhas de raciocínio de acordo com suas vontades, ambos tentando afastar os dois Stussy um do outro. Aqui, tanto Stuhlbarg, quanto Winstead ganham mais destaque, se configurando como verdadeiros manipuladores, como se competissem pela atenção integral de suas contrapartes. Tanto Emmit quanto Ray são meros peões, com a falsa ilusão de terem controle sobre o tabuleiro.
Essa posição de igualdade dos irmãos perante aqueles mais próximos a eles é deixado bem claro pelo plano escolhido como imagem dessa crítica, em perfeita simetria, exceto pelo carro vermelho no centro da tela. Dito isso, podemos interpretar o veículo como essas pessoas que “querem o bem” de cada um deles, é o elemento de divisão entre os dois, já que, sem eles, ambos teriam feito as pazes. Michael Uppendahl, que assina a direção, nos diz muito somente com essa imagem: se tirássemos o carro, poderíamos espelhar a imagem e nada mudaria, demonstrando que a escolha de colocar Ewan McGregor interpretando os dois personagens não foi por mero acaso.
Se extrapolarmos um pouco, entrando no campo da suposição, poderíamos até dizer que Ray vai causar a morte de seu irmão, já que o carro está apontando para Emmit, como se fosse atropelá-lo e não posso deixar de lembrar de um plano específico de O Poderoso Chefão, no qual Michael aponta sua arma, durante um treinamento e na sequência seguinte, imediatamente, vemos Sonny, que morreria pouco após. O veículo vermelho, portanto, em cor tão intensa, se destacando dos tons mais ofuscados, pode perfeitamente representar a violência prestes a eclodir, algo não tão incomum em Fargo.
Os paralelos continuam, claro, em todos os outros aspectos do episódio. Temos o velho com mesmo sobrenome que acaba morrendo por mero azar, dois personagens distintos que não sabem utilizar o computador (ou simplesmente não gostam), um policial saindo da linha (Ray), enquanto outra (Gloria) se mantém firme em relação à lei. Por último, temos o novo chefe da policia provocando mudanças na delegacia, enquanto o mafioso Varga toma controle da empresa de Emmit. É possível afirmar, então, que o roteiro de Noah Hawley foi pensado com essa simetria em mente do início ao fim, o que nos remete à sequência de abertura de The Law of Vacant Places, com um indivíduo sendo confundido por outro. Temos, aqui, um gigantesco espelho distorcido, que cria imagens parecidas, mas não necessariamente iguais e o mais brilhante disso tudo é que temos a completa consciência de que há algo errado durante todos os pontos da projeção. A similaridade deixa de oferecer conforto e passa a trazer angústia, evidenciando que, a qualquer momento, algo muito ruim pode acontecer, com diferentes histórias muito parecidas sendo contadas, todas elas, claro, conectadas entre si.
Michael Uppendahl, portanto, coloca em tela com exatidão a ideia que o roteiro de Hawley busca passar. São subtramas similares, com elementos estranhos dentro delas, sendo apresentadas com tanto paralelismo que chega a ser desconfortável para o espectador e isso é algo, surpreendentemente, bom, já que somente um tolo buscaria conforto em Fargo. A simetria dos grandes mestres do cinema é herdada, aqui, por Noah Hawley, que a aplica com maestria, fazendo desta uma obra que, também, deve ser apreciada com atenção redobrada à forma e não somente à substância.
Fargo – 3X02: The Principle of Restricted Choice — EUA, 2017
Showrunner: Noah Hawley
Direção: Michael Uppendahl
Roteiro: Noah Hawley
Elenco: Ewan McGregor, Carrie Coon, Mary Elizabeth Winstead, Goran Bogdan, David Thewlis, Michael Stuhlbarg, Shea Whigham, Scott Hylands, Mark Forward
Duração: 53 min.