Nós, amantes da sétima arte, temos uma dívida eterna com a França. Afinal, foram cidadãos franceses que inventaram o cinema, ou, para evitar qualquer tipo de controvérsia (dado o fato de que a evolução tecnológica passou pelas mãos de muita gente), boa parte dele. Com a criação do cinematógrafo, os Irmãos Lumière até hoje são conhecido como “os pais do cinema”, produzindo curtas pioneiros como A Chegada do Trem na Estação e A Saída da Fábrica Lumière em Lyon. Além deste fator, muito do que conhecemos como cinema atualmente se deve aos trabalhos do revolucionário George Meliès, em especial, o fabuloso Viagem à Lua. Não é à toa que até hoje o cinema francês é prestigiado imensamente. Podemos, portanto, adicionar a essa lista de inúmeros precursores das diferentes facetas primordiais da arte que um mundo inteiro aprendeu a amar, o animador Émile Cohl, responsável por Fantasmagorie, filme este que é, por muitos historiadores, considerado como o primeiro desenho animado da história.
A começar, o curta-metragem é incomparável com as obras mais conhecidas do gênero; a animação ainda estava em uma situação muito primitiva se colocada em comparação com a que temos nos dias de hoje. A simplicidade das ilustrações, como, por exemplo, o bonequinho de palitos que nos acompanha pelo filme, no entanto, dá margem para um surrealismo sensacional, com os objetos que o personagem encontra em cena, transformando-se em outros de uma forma fantástica e principalmente, mágica. Claramente, não é por menos que a referência no título é ao Fantasmógrafo, uma variação da lanterna mágica que projetava imagens fantasmagóricas na parede. Não temos nenhuma estrutura narrativa tradicional formulada, uma história para acompanharmos, mas Émile Cohl elabora uma maravilhosa modelação incoerentemente coerente, que dá progressão aos eventos com uma fluidez invejável para muito animador que veio depois dele, além de bastante humor.
Com a inserção da mão do próprio diretor para brincar com o seu protagonista feito de traços simples, tanto no início quanto no final do filme, Cohl colabora acertadamente para que entendamos a animação como uma sequência de desenhos animados. De fato, a aparência que se tem de que os desenhos foram feitos com giz de cera e o fundo é nada mais nada menos que um quadro negro, daqueles de escola, não é mera coincidência. Para fazer o fluxo de consciência do personagem, cada frame foi desenhado no papel e depois filmado em negativo, o que inverte o branco pelo preto, e vice-versa. Nesse trabalho minucioso, que rendeu pouco mais de um minuto de animação, Cohl fez cerca de 700 desenhos, todos à mão, em uma época na qual os animadores ainda não tinham sofisticados computadores para conduzir o complexo processo por eles. Por falar em complexo, esta “aventura” em Fantasmagorie é definitivamente uma tentativa muito graciosa de acompanharmos transformações que, na realidade, não fazem o menor sentido, ou fazem, mas são complexas demais para a entendermos em uma única visita ao longínquo ano de 1908. Todavia, isso faz parte da graça do negócio, que tem seu tom nonsense aliado com o movimento artístico francês denominado A Arte Incoerente, o qual durou, infelizmente, pouco tempo, embora tenho precedido as vanguardas europeias.
Ademais, percebam que essas modelações de figura para figura não soam artificiais. Soam naturais, como se Cohl estivesse fissurado em uma brincadeira divertidíssima na qual uma garrafa vira uma flor e não temos problema algum com isso. Estamos, na verdade, hipnotizados pelo quão incrível é um elefante virar uma casa sem causar nenhuma quebra de crença. Fantasmagorie tem dentre suas características uma coesão animada estupenda. Fora isso, a evolução do bonequinho de palitos é sentida pelo espectador. Não necessariamente ele passa por um arco (lembrando que o filme não possui uma história factual), mas vemos ele passar por diferentes fases durante toda a projeção, a qual se encerra com o simpático boneco acenando para nós em cima de um cavalo. Seja um camundongo falante, seja coelhos e pica-paus malandros, até mesmo a caça interminável de um gato, desesperado atrás de um rato (ou seria o contrário?); todas estas histórias, que definitivamente não teriam o mesmo encanto no live-action, devem muito a essa primeira exploração da arte da animação, produzida, obviamente, por um francês (embora, como sempre, um americano esteja tentando roubar esse mérito da obra de Emile Cohl, algo que veremos em outro texto).
Fantasmagorie (1908) - Domínio Público
Fantasmagorie – França, 1908
Direção: Émile Cohl
Duração: 1 min. e 20 seg.