Home TVTemporadas Crítica | Família da Meia-Noite – 1ª Temporada

Crítica | Família da Meia-Noite – 1ª Temporada

Não é apenas mais uma série médica.

por Ritter Fan
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Família da Meia-Noite é a versão ficcional do documentário homônimo de 2019 escrito e dirigido por Luke Lorentzen que conta um pouco da vida da família Ochoa, dona de um negócio de ambulâncias privadas na Cidade do México para preencher um enorme vazio do sistema de saúde por lá. Apesar de obviamente inserida na inchada e super explorada  categoria de “drama médico”, a coprodução americana e mexicana oferece uma visão refrescante sobre o tema, partindo do caos da referida cidade que não oficialmente sanciona, mas desesperadamente precisa do trabalho incansável dos donos dessas ambulâncias que rodam a cidade em busca de vítimas e que vivem do dinheiro que clínicas, hospitais e pacientes pagam para eles “por fora”.

Na série, a família Ochoa é rebatizada para Tamayo e é composta pelo patriarca Ramón (Joaquín Cosio), que normalmente dirige a ambulância e tem problemas cardíacos; Marcus (Diego Calva), o filho mais velho que largou a escola para trabalhar com o pai, mas que ama mesmo ser rapper; Marigaby (Renata Vaca), a filha do meio que está no começo da faculdade de medicina que cursa de dia a duras penas e trabalha ilegalmente (pois a faculdade proíbe) na ambulância como paramédica à noite; e, por incrível que pareça, Julito (Sergio Bautista), o filho mais novo, um menino que faz de tudo para não ir à escola e que adora sair pela madrugada junto com seu pai e irmãos, mesmo que, ironicamente, desmaie quando vê sangue. O que diferencia a série é exatamente essa dinâmica familiar que é ainda desmembrada pelas vidas privadas de cada um dos quatro, com a entrada posterior de Lety (Dolores Heredia) na equação, ex-esposa de Ramón e mãe dos três jovens que abandonara a família há algum tempo e se casara com o pastor Luke (Óscar Jaenada).

Apesar de a série começar com a abordagem do trabalho cotidiano árduo na ambulância, trabalho esse que sempre termina com Ramón ou Marcus tentando conseguir dinheiro das clínicas, hospitais e pacientes, algo que é sempre um momento antipático, mas, na prática, essencial para a sobrevivência deles e de um sistema de saúde que extraoficialmente depende deles e de outros que oferecem o mesmo tipo de serviço e com quem eles competem diretamente. Mas os roteiros vão, espertamente, aos poucos saindo dessa estrutura básica, estrutura essa que vem diretamente do documentário composto de vinhetas sobre os casos em que os Ochoas trabalham, e enveredando pelos lados pessoais dos componentes da família de forma a mostrar muito claramente todos os sacrifícios que são feitos e o quão perto eles vivem do perigo e o quão pouco são remunerados.

Há um cuidado muito grande para capilarizar as histórias, trazendo variedade e ao mesmo tempo coesão, com Ramón tentando esconder sua doença, Marcus engravidando sua namorada colombiana e também rapper Cris (Mariana Gómez), que deseja mais do que tudo imigrar para os EUA, Marigaby equilibrando seus estudos e trabalho com seu namoro com o médico mais velho Raúl (José María de Tavira), além de sua atração por Bernardo (Itzan Escamilla), seu colega de faculdade, e Julito envolvendo-se com uma amiga esperta que logo vê oportunidades financeiras nas fotos de desgraça que ele pode tirar. Apesar de Lety entrar um tanto quanto abruptamente na narrativa e sendo absorvida por ela de maneira pouco natural, logo mostra a que veio ao lidar com uma mãe que abandonou os filhos, algo fácil de ser taxado de absurdo, de pecado capital e tudo mais, pois é justamente essa questão que ganha contexto e acaba sendo muito bem trabalhada na temporada inaugural, de forma a desmistificar a maternidade como algo sagrado que a mulher nunca, em  circunstância alguma, pode virar o rosto.

Sim, há sem dúvida um verniz de melodrama na série, mas tenho para mim que isso não só é inevitável, como é muito bem conduzido pelos roteiros e trabalhos de direção, que conseguem equilibrar os “casos da semana” com os dramas pessoais, sempre esforçando-se para sair do óbvio, algo que fica evidente pela abordagem de Lety e principalmente de Marigaby que, para mim, pode ser chamada de protagonista, já que ela não só representa a esperança que a família tem em ter uma médica formada em seu meio, como é nessa personagem que as linhas narrativas convergem, seja pela maneira como sua vida amorosa é lidada ao longo da temporada, sempre saindo do padrão e jamais entregando respostas fáceis, seja pela forma como ela é afetada pelas perdas de vidas de pessoas que ela inicialmente salvou ou pela maneira como se relaciona com os demais de sua família, além de, claro, sua conturbada vida na faculdade, repleta de atrasos e de faltas que ameaçam sua permanência por lá, apesar de ela mostrar profundo conhecimento das matérias.

Outro aspecto que ajuda muito na história é um trabalho de fotografia que, apesar de não exatamente tentar emular o de um documentário, aproxima-se dele, criando um confortável meio-termo entre o visual que se espera de uma série ficcional e o de uma obra documental. Isso ajuda não só na imersão, como também na verossimilhança dos casos da semana e na evidente escolha da produção em focar não em salvamentos milagrosos ou sequências de ação repletas de tensão, mas sim no tratamento após os salvamentos e todo aquele trabalho “sujo” de obter dinheiro pelas vidas humanas, algo que faço questão de colocar entre aspas, pois raramente pensamos em sujeira quando o mesmo sistema cobra oficialmente de vítimas para salvar suas vidas, seja a cobrança direta, seja indireta via planos de saúde privados ou sistemas públicos de saúde. Em outras palavras, Família da Meia-Noite sabe ser novelesco da mesma maneira que sabe ser série com estrutura de caso da semana e em nenhuma circunstância esquece-se de ser crítico do sistema de saúde mexicano que reverbera em diversos outros sistemas de saúde do mundo, inclusive os dos EUA e do Brasil. Não é, portanto, apenas mais uma outra série médica.

Família da Meia-Noite (Midnight Family – EUA/México, 24 de setembro a 19 de novembro de 2024)
Criação: Julio Rojas, Gibrán Portela (baseado em documentário dirigido por Luke Lorentzen)
Direção: Natalia Beristain, Pablo Fendrik, Israel Adrián Caetano
Roteiro: Gibrán Portela, Fernanda Eguiarte, Ana Sofía Clerici, Francisco Ortega, Julio Rojas, Gabriel Ripstein, Adriana Pelusi
Elenco: Joaquín Cosio, Renata Vaca, Diego Calva, Sergio Bautista, José María de Tavira, Itzan Escamilla, Mariana Gómez, Dolores Heredia, Óscar Jaenada, Yalitza Aparicio
Duração: 457 min. (10 episódios)

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