Avaliação da série como um todo:
Avaliação da 4ª Temporada:
- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas das demais temporadas.
Com a quarta temporada já em produção, mas antes de seu lançamento, Evil foi vítima de cancelamento pelo Paramount+ que, porém, acabou permitindo quatro episódios extras para que fosse possível que o casal Robert e Michelle King desse um final para a série. Saliento um final, pois não só o final que vemos no 14º episódio da temporada (alguns chamam os quatro episódios finais de uma mini quinta temporada – e os títulos até mudam o padrão para salientar isso, na verdade) não é definitivo, como ele deixa portas abertas para um possível retorno da série em futuro incerto e não sabido. Seja como for, pela própria natureza e estrutura da obra, mesmo se ela tivesse tido a duração completa imaginada pelos Kings, tenho para mim que ela jamais, em circunstância alguma, seria encerrada de maneira peremptória, algo que, vale dizer, não costumo esperar de série alguma, especialmente uma que aborda o sobrenatural como Evil.
Mas a pergunta que realmente interessa é: dada as limitações impostas pela produção, Evil afinal acabou bem ou mal? E, sem maiores delongas, já respondo à pergunta afirmando que, mesmo tendo sido a pior temporada – ou a menos ótima, na verdade -, o final foi, para mim, muito satisfatório. Curiosamente, o maior problema que detectei na temporada não teve relação alguma com seu cancelamento a destempo, mas deixe-me ir devagar com o andor como dizia minha avó e começar pelos aspectos positivos do derradeiro ano, incluindo aí a mini-temporada “anexada” ao final para levar a narrativa a seu encerramento, para, então, eu abordar o que ela teve de negativo.
Pois bem, para começo de conversa, aquilo que é mais valioso na série manteve-se firme e forte na quarta temporada, ou seja, o fantástico relacionamento entre os personagens sacramentado pela invejável química entre o trio principal formado pela psicóloga agnóstica Kristen Bouchard (Katja Herbers), pelo padre David Acosta (Mike Colter) e pelo cientista ateu Ben Shakir (Aasif Mandvi) e entre eles e o adoravelmente sinistro antagonista central Leland Townsend (Michael Emerson), a por vezes antagonista, por outras vezes não Sheryl Luria (Christine Lahti), mãe de Kristen, e o excelente grupo de coadjuvantes de grande relevância, ou seja, as quatro enérgicas filhas de Kristen, Lynn (Brooklyn Shuck), Lila (Skylar Gray), Lexis (Maddy Crocco) e Laura (Dalya Knapp), além da irreverente, direta e particularmente eficiente na eliminação de demônios Irmã Andrea (Andrea Martin). Trata-se de um elenco ímpar que continua afiadíssimo ao longo dos 14 episódios do último ano.
Da mesma maneira, a estrutura de “caso da semana” que vimos mais marcadamente na primeira temporada da série continuou intacta. Sim, a história central única, que é a luta dos avaliadores da Igreja Católica contra o “Mal” representado por 60 demônios organizados por Leland, ganhou mais relevo e proeminência já na segunda temporada e ainda mais na terceira temporada em um crescendo que reputo absolutamente normal, mas a construção clássica à la Arquivo X – na verdade, uma versão bem melhorada do que Chris Carter tornou popular a partir dos anos 90 – manteve-se presente e continuou presente na quarta temporada, inclusive nos derradeiros quatro episódios. É perfeitamente possível que muitos espectadores desgostem dessa insistência com o formato, em razão de o papel de Leland na estrutura do Mal ter se tornado cada vez mais evidente para os avaliadores. Afinal, em tese, seria muito mais natural e lógico que eles focassem seus esforços exclusivamente no grande vilão e nos demônios graúdos que o cercam, mas tenho para mim que isso faria com que a série perdesse sua variedade e, mais do que isso, sua essência. Era vital para o entrosamento e também conflito entre os personagens que as investigações da semana continuassem com destaque e que, no melhor estilo da série, umas fossem solucionadas, outras não, e algumas retroalimentassem o mistério central. Sem isso, muito de Evil seria esvaziado, com a série tornando-se comum, algo que ela definitivamente não é.
A quarta temporada – e aqui falo especificamente dos 10 episódios inicialmente imaginados para ela se a série não tivesse sido cancelada – deu ainda mais destaque para Sheryl em seu caminho pelo fio da navalha entre o bem e o mal, com Christine Lahti absolutamente matando a pau em seu papel divertidíssimo de mãe durona, avó amorosa, mulher vingativa e executiva impiedosa da “sucursal do inferno”. Seu desenvolvimento na temporada, trabalhando para Leland, mas servindo a si mesma o tempo todo e, depois, quando a vida de uma de suas netas é ameaçada, tornando-se um furacão destrutivo que quase liquida Leland e sua cabala demoníaca foi um dos grandes prazeres da temporada, com a culminação sendo as diversas sequências em que ela planeja e executa o batizado de ninguém menos do que o próprio anticristo, resultado do furto do óvulo de Kristen, que é fertilizado por Leland. E seu fim heroico, quase virando o jogo, foi muito bem trabalhado, com a devida construção de tensão dando aquele gostinho de vingança contra Leland e a bela e até emocionante sequência da extrema-unção conferida por David em seu leito de morte.
Nos quatro episódios finais, o objetivo era acabar com a série e, para fazer isso, os showrunners acabaram com a própria Igreja St. Joseph onde David vive e trabalha e logo antes tornara-se o pastor e também com o próprio trabalho dos avaliadores. A simbologia é mais importante do que a lógica aqui, vale dizer, pois é inegável que essa decisão, dentro da série, de literalmente vender o prédio da igreja e de encerrar os trabalhos da equipe não é bem construída e tem uma lógica interna fraca, que não casa bem com o que vimos antes, além de vir muito rapidamente demais por força da quantidade de episódios e da decisão de não fazer pulo temporal algum entre o 10º e o 11º episódios. O que efetivamente fica é a abordagem finalista e a crítica forte ao racismo dentro da Igreja Católica, algo que David deixa bem claro logo quando é escolhido para comandar a paróquia. E a reviravolta final que envolve o ataque de Leland à Entidade na própria ex-igreja, agora dessacralizada, e a reconstituição do grupo de avaliadores, só que com David e Kristen (e seus agora cinco filhos, contando o pequeno diabinho) em Roma e Ben permanecendo no emprego que lhe paga bem, mas que não lhe dá o mesmo prazer, funciona com perfeição para o tipo de final que uma série dessas poderia ter, inclusive com o bebê mostrando seus dentinhos bem afiados e Kristen simplesmente aceitando ou por ainda não acreditar ou por ter certeza de que, sob seu teto, o Mal não se erguerá.
Mas, como eu disse, nem tudo funciona e um aspecto, dentre outros, não funciona mesmo, pelo menos não para mim. Para já falar do elefante na sala, porque diabos – sim, diabos! – inventaram esse negócio de “visão remota” para David, transformando-o, quase que literalmente, em um super-herói dos quadrinhos e que me fez lembrar o tempo todo da “visão além do alcance” de Lion-O, dos ThunderCats??? Sim, ele já havia tido muitas visões antes, notadamente da “Kristen Tentadora” em seu quarto e da santa segurando o carneiro, mas um poder extrassensorial que lhe permite ver outros lugares com bases em coordenadas e/ou objetos e, como se isso não bastasse, a capacidade de “entrar no corpo” de pessoas e de até controlá-los? WTF??? Tudo o que de fascinante David tinha no que se referia à Igreja Católica e seu passado, suas dúvidas, o amor sexualmente carregado que sente por Kristen quase que vai completamente por água abaixo com essa imbecilidade que inventaram na série para ele e que, vamos combinar, não tem função prática alguma, pois, na hora do “vamos ver”, ele tem seu poder neutralizado por Leland que, surpresa, surpresa, também é capaz de “visão remota”. E tudo o que gravita ao redor dessa invencionice sem pé nem cabeça também é muito mal trabalhado, notadamente a passagem de bastão do recrutamento de David para a Entidade do enigmático Victor LeConte (Brian d’Arcy James) para o sem graça Padre Dominic Kabiru (Chukwudi Iwuji) e, depois, para o mais sem graça ainda Padre Giovanni De Vita (Denis O’Hare), que acaba fazendo murchar toda a aura de “serviço secreto do Vaticano” da Entidade e transforma tudo em uma bobagem gigantesca. E vale lembrar que esse poder safado é introduzido no começo da quarta temporada, ou seja, já era algo que seria inserido de qualquer forma na série, com ou sem seu cancelamento, o que torna a coisa ainda mais inexplicável e inaceitável.
De maneira diferente, temos o fim que é dado a Andy (Patrick Brammall), marido de Kristen. Sua macabra subserviência a Leland é um elemento muito bem trabalhado ao longo dos episódios regulamentares, inclusive sua decisão de se internar em um hospital psiquiátrico ao final para não representar mais um perigo à sua família. No entanto, certamente pela necessidade de apressar o encerramento definitivo de seu arco, o primeiro episódio extra da temporada já cria uma situação de infidelidade para ele no hospital, com direito às máscaras de animais completamente surreais que já havíamos visto ele usar com Kristen. Não é que ele não possa ser adúltero e fugir com sua amante Ellie (Anna Chlumsky) com o troco que conseguiu da venda de seu negócio, mas foi uma escolha inglória que não era estritamente necessária ou que tenha sido lidada de maneira decente. Tudo bem que toda a história de Ellie fingir ser a Laura de 30 anos no futuro foi um grande uso da personagem que gerou um mistério diferente para a série, mas não sei se o pagamento de dividendos valeu a defenestração de Andy desse jeito não.
Mesmo com problemas, porém, a derradeira e alongada temporada de Evil conseguiu manter a essência da série e entregar um encerramento mais do que dino à série. Eu já disse isso em minhas críticas anteriores, mas repetirei aqui: Evil foi uma das maiores e mais agradáveis surpresas televisivas que tive nos últimos vários anos e fico triste em pensar o quão vazio o panorama televisivo ficará sem esse elenco azeitado vivendo esses personagens inesquecíveis. Quem sabe um dia eles não voltam, não é mesmo? Afinal se até a raspa do tacho televisivo e cinematográfico retorna para mais na base da pura nostalgia, porque não torcer para que algo do naipe de Evil ressurja mais para a frente? Uma coisa é certa: eu assistirei!
P.s.1: Pontos extras para as participações de John Carroll Lynch como Henry Stick e de Richard Kind como um juiz corrupto, além do fantástico design da versão demoníaca de Stick.
P.s.2: Confesso que foi emocionante ver os “duplos” da trinca central no episódio 4X12, com David como um boxeador francês, Ben como um pai de família e Kristen como uma bicho-grilo holandesa (nacionalidade da atriz, aliás).
Evil – 4ª Temporada (Idem – EUA, de 23 de maio a 22 de agosto de 2024)
Lançamento no Brasil (completa, com os quatro últimos episódios): 03 de setembro de 2024
Criação: Robert King, Michelle King
Direção: Robert King, Peter Sollett, Yap Fong Yee, Darren Grant, John Dahl, Joe Menendez, Sam Hoffman, Tyne Rafaeli
Roteiro: Robert King, Michelle King, Rockne S. O’Bannon, Dewayne Darian Jones, Aurin Squire, Sarah Acosta, Louisa Hill, Oneika Barrett, Nialla LeBouef, Erica Larson, Anju Andre-Bergmann
Elenco: Katja Herbers, Mike Colter, Aasif Mandvi, Kurt Fuller, Marti Matulis, Brooklyn Shuck, Skylar Gray, Maddy Crocco, Dalya Knapp, Christine Lahti, Michael Emerson, Andrea Martin, Danny Burstein, Brian Stokes Mitchell, Brian d’Arcy James, Anthony DeSando, Wallace Shawn, Molly Brown, Gia Crovatin, Dana Gourrier, Chukwudi Iwuji, John Carroll Lynch, Richard Kind, Anna Chlumsky, Denis O’Hare
Duração: 840 min. (14 episódios)