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Crítica | Evil – 1ª Temporada

O mal nunca foi tão bom.

por Ritter Fan
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  • Leiam, aqui, as críticas das demais temporadas.

A essa altura de minha vida, com décadas e décadas assistindo filmes e séries com grande constância e o máximo de variedade que me permito, encontrar algo realmente surpreendente é uma raridade. É bem verdade que me deparo anualmente com obras-primas das mais diversas naturezas, mas falo, aqui, de surpresas mesmo, de obras que não são necessariamente irretocáveis, mas que oferecem o inesperado, o diferente, o extraordinário no sentido original da palavra. Evil, que, por aqui, ganhou o subtítulo Contatos Sobrenaturais e que não pretendo usar, é uma série que me pegou completamente desprevenido e que a cada episódio desta primeira temporada me presenteou com algo diferente,  inusitado e fascinante.

Para começo de conversa, a série criada pelo veteraníssimo casal Robert e Michelle King que, dentre outras obras, foi responsável pela longeva The Good Wife e seu quase tão longevo (em número de temporadas) spin-off The Good Fight, é inclassificável ou, pelo menos, faz de qualquer tentativa de classificação um exercício vão e injusto de reducionismo. Evil trafega entre gêneros e, quando afirmo isso, não quero dizer que a série se transforma de uma coisa em outra como é o clássico caso de Psicose, de Alfred Hitchcock, mas sim que ela faz o difícil malabarismo de embaralhar diversos gêneros sem perder a coesão, sem parecer estar forçando a barra nesse equilíbrio. Evil é como Thelma & Louise, Fargo, Assassinos por Natureza e Na Mira do Chefe, apenas algumas das obras que fundem gêneros e que resultam em algo especial, diferenciado e quase que exclusivo, cada uma delas com características próprias.

Evil é drama, comédia e horror ao mesmo tempo. É thriller psicológico da mesma forma que é horror na base de jumpscare quando assim quer ser. Mas é também uma série de humor refinado com uma abordagem sexualmente carregada sem nunca ser vulgar. É um romance, mas sem apelar para o óbvio. É um policial investigativo instigante com terror sobrenatural da mais alta categoria. Evil vive desse tipo de costura narrativa que faz tudo parecer natural, da atração platônica que os dois protagonistas sentem um pelo outro, passando pelos demônios com nomes de gente normal que aparecem à noite em sonhos (será que são sonhos?) e chegando ao vilão que parece uma mistura de louco varrido com cão que ladra, mas não morde. E, para mim, esse é o grande trunfo da série, pelo menos nesta primeira temporada (escrevi a presente crítica sem ter assistido às demais), é algo que imediatamente a diferencia das demais e causa a tal genuína e duradoura surpresa que mencionei no início de meus comentários.

A premissa básica é a boa velha luta do Bem contra o Mal, aqui materializada por um trinca de investigadores do sobrenatural que trabalham para a Igreja Católica para detectar – ou não – fraudes em alegações de possessões e outros eventos dessa natureza. David Acosta (Mike Colter) é o líder do grupo, um seminarista próximo de tornar-se um padre que trabalha com Ben Shakir (Aasif Mandvi), um especialista em tecnologia ateu que foi criado na religião islâmica, e que, no começo da temporada, contrata a Dra. Kristen Bouchard (a atriz holandesa Katja Herbers), uma psicóloga forense completamente cética, para a equipe. A química entre os três atores é magnífica, funcionando tanto em trinca quanto em duplas em todas as combinações, com Colter funcionando como o estoico, torturado, mas também simpático líder e Ben como alívio cômico, mas com o destaque mesmo ficando para o charme arrebatador e naturalidade de Herbers com sua Bouchard que, além de uma profissional astuta, é mãe amorosa de nada menos do que quatro meninas, uma delas com um problema sério de saúde, e casada com um guia de alpinismo que muito raramente está em casa.

Estruturalmente, a temporada de 13 episódios faz uso de uma espécie de versão muito avançada e sofisticada do estilo Arquivo X de lidar com o equilíbrio entre episódios soltos e episódios que são essenciais à narrativa única. Faço essa comparação com a clássica série de Chris Carter, que, se não inventou o estilo, tornou-o extremamente popular, para salientar minha adjetivação de que se trata de algo bem mais moderno e fluido, já que todos os episódios de Evil contam uma história só, mas, ao mesmo tempo, eles parecem ser autocontidos. O casal King joga um jogo de longo prazo, jogo esse que sequer fica claro por completo neste primeiro ano, mas as linhas narrativas que parecem independentes ou que até parecem não ter exatamente resoluções, são inteligentemente amarradas ao longo da progressão da temporada, com um bom movimento circular que faz o primeiro e último episódios se conectarem umbilicalmente, ao mesmo tempo em que leva o espectador a um cliffhanger raro de se ver por aí, um que não exige continuidade e/ou resolução imediata na temporada seguinte e que existe para lançar uma dúvida, para colocar em xeque o que acabamos de (não)ver.

Outra característica da temporada que vale destaque é como os roteiros alimentam-se igualmente do ceticismo e da crença dos espectadores, construindo o tabuleiro para um fascinante jogo que leva aqueles que acreditam no sobrenatural a duvidar dele e vice-versa. Há um claro interesse pela convergência e não pela criação de polêmicas polarizadoras como é a regra hoje em dia. Os textos não pegam na mão de ninguém para dizer que é assim ou assado, que a solução é essa ou aquela. Boa parte do que vemos nos deixa em dúvida, dúvida essa que é compartilhada pela trinca principal sem que haja qualquer traço de desrespeito por alguém acreditar ou deixar de acreditar em alguma coisa. O sobrenatural não atropela a ciência da mesma forma que a ciência não atropela o sobrenatural e, com isso, há espaço para todos, espaço esse que é ampliado pela forma como todas as situações são tratadas, inclusive as inicialmente assustadoras presenças de demônios noturnos que, em um passo posterior, tornam-se quase que “amigos” de quem eles infernizam.

Falando nessas nuanças, não poderia deixar de comentar o deleite que é ver Michael Emerson como o Dr. Leland Townsend, um psicólogo forense como Kirsten que é inimigo dela tanto profissional quanto espiritualmente, pois, como tudo leva a crer, ele é no mínimo um simpatizante das forças ocultas com planos maléficos. Trata-se de um vilão maravilhosamente cínico e debochado, por vezes até cômico, mas sem jamais perder seu lado perverso, macabro, aterrador mesmo. Se Katja Herbers encantou-me com uma mistura de jovialidade e charme com experiência e força, Emerson é imediatamente irresistível na construção de um personagem enigmático que dá vontade ao mesmo tempo de rir e de correr dele.

E essas sensações opostas são, diria, a marca principal da temporada que se refestela em contrastes. Há, para além do choque entre o profano e o sagrado, um lado satírico e outro sério, uma abordagem que consegue ser simultaneamente tosca e sofisticada, surreal e realista e que leva tanto ao desconforto quanto ao aconchego com momentos sãos e doentios, assustadores e hilários, pesados e pueris. E, em meio a isso tudo, a temporada toda é uma lição de como trabalhar clichês de maneira original, sem nenhum pudor em subverter expectativas ou mergulhar completamente no cômico e na galhofa, trazendo assuntos relevantes como a influência negativa e invisível de redes sociais e videogames, a radicalização de mentes frágeis, a misoginia, o preconceito racial e assim por diante. Chega a ser inacreditável o quanto os roteiros conseguem “empacotar” em tão pouco tempo e trafegando por tantos gêneros e estilos.

Evil é um triunfo da narrativa serializada, uma obra que, na superfície, pode não parecer particularmente complexa, mas que, quando olhamos para imediatamente abaixo de suas primeiras camadas, percebemos sua elegância e sua auspiciosa e bem particular maneira de retirar o maniqueísmo da luta entre o bem e o mal. Entre risadas e sustos, charme e vulgaridade, alegrias e horrores, a criação do casal King oferece de tudo um pouco de maneira impecável. Jamais imaginaria que seria tão surpreendido por uma série quanto fui por Evil, mas eu só sei que, assim que acabar de escrever a última palavra desta crítica, correrei para assistir a próxima temporada.

Obs: Não me lembro mais exatamente quem foi, mas coloquei essa série na minha lista prioritária depois que um leitor me chamou atenção para ela. Agradeço imensamente quem quer que tenha feito essa sugestão!

Evil – 1ª Temporada (Idem – EUA, de 26 de setembro de 2019 a 30 de janeiro de 2020)
Criação: Robert King, Michelle King
Direção: Robert King, Ron Underwood, Gloria Muzio, Peter Sollett, Tess Malone, Kevin Rodney Sullivan, Jim McKay, James Whitmore Jr., Frederick E.O. Toye, John Dahl, Rob Hardy, Michael Zinberg
Roteiro: Robert King, Michelle King, Rockne S. O’Bannon, Davita Scarlett, Dewayne Darian Jones, Aurin Squire, Patricia Ione Lloyd, Nialla LeBouef, Louisa Hill
Elenco: Katja Herbers, Mike Colter, Aasif Mandvi, Kurt Fuller, Marti Matulis, Euan Morton, Brooklyn Shuck, Skylar Gray, Maddy Crocco, Dalya Knapp, Christine Lahti, Michael Emerson, Darren Pettie, Brooke Bloom, Danny Burstein, Boris McGiver, Sohina Sidhu, Clark Johnson, Noah Robbins, Nora Murphy, Karen Pittman, Nicole Shalhoub, Li Jun Li, Kristen Connolly, Patrick Brammall, Peter Scolari
Duração: 513 min. (13 episódios)

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