Eu sou o melhor no que faço, mas o que faço melhor não é nada bonito.
Você sabe que uma história será boa quando a frase que a abre é inesquecível e se torna algo copiado e repetido dezenas de vezes posteriormente e que qualquer leitor de quadrinhos sabe de cor tanto em sua língua quanto no original. É o perfeito aviso de que o que leremos nas páginas seguintes é algo sério, completamente fora da continuidade normal de publicações mainstream.
Mas não se enganem. A minissérie Eu, Wolverine, escrita por Chris Claremont e desenhada por Frank Miller é perfeitamente dentro da continuidade do baixinho canadense, mas, ao mesmo tempo, é uma forma de recriação do personagem, de aprofundamento de sua mitologia. Afinal de contas, desde seu surgimento em O Incrível Hulk # 180 e 181, em 1974, Wolverine nunca havia sido laureado com uma publicação solo. O trabalho da dupla, até hoje comumente considerado como a melhor história com o personagem, foi o começo de uma febre pelo Carcaju zangado que tomou a Marvel de assalto até muito recentemente, além de ter servido de inspiração para o segundo filme solo do herói. Wolverine tornou-se favorito dos fãs exatamente nesse momento, apesar de ter tomado lugar de destaque nos X-Men antes disso (ele passou a fazer parte do grupo em 1975, a partir de Giant-Size X-Men #1) e de só ganhar uma efetiva revista própria “ilimitada” seis anos depois.
Foi Eu, Wolverine que sedimentou esse lugar de honra para o herói, ao aprofundar seu passado com Mariko Yashida, seu eterno amor, e sua história pregressa no Japão. Claremont escreve, essencialmente, uma história de amor e honra, deslocando Logan para o país do sol nascente atrás de Mariko, que ele descobre se casou para honrar promessa de seu pai, Lorde Shingen. Isso depois, claro, de uma introdução absolutamente sensacional que o mostra caçando um urso enlouquecido e, depois, o caçador irresponsável que transformou o animal em um assassino. Esse é tom da minissérie: o lado fera, assassino de Wolverine versus o lado humano, carinhoso e apaixonado. O conflito é evidente e o diálogo interno de Claremont nos passa perfeitamente bem essa ideia.
E Claremont, obviamente com ajuda de Miller, insere o clã de ninjas O Tentáculo (The Hand, no original), criado pelo segundo para sua então corrente e atualmente mitológica série do Demolidor, além de criar Yukio, a ronin que ajuda (ou não) Logan a navegar os problemas que encontra no Japão. Com isso, o roteirista constrói uma narrativa contendo todos os elementos de um thriller eficiente, daqueles que o leitor não consegue parar até chegar a seu satisfatório – ainda que um pouquinho sentimental demais – final.
Mas talvez o grande diferencial da minissérie seja mesmo a arte de Frank Miller. Inspirado em seu comando do Demolidor, Miller trabalha os movimentos de Wolverine como um balé cuidadosamente coreografado. Apesar de “nanico”, o herói parece esguio, tomando poses animalescas, especialmente quando rasteja nas sombras ou escala paredes. Há também muita graça e elegância nas várias sequências de luta contra os ninjas do Tentáculo e especialmente contra o vilanesco Lorde Shingen, que é retratado como um grande espadachim. São dois momentos cruciais na trama – as duas lutas entre os dois – e cada uma delas é narrada e desenhada de maneiras peculiares, a primeira deixando claro certo desleixo pela parte de Logan e arrogância por Shingen e, a segunda, mais nas sombras, mostrando um lado de Wolverine que não se importa com sua própria vida, só com o objetivo final.
A fluidez também é muito marcante na transição de quadros, sem que Miller faça uso da divisão de uma página inteira em quadros menores tradicionais. Ao contrário até. Nessa minissérie, ele, por diversas vezes, divide cada página em duas, mas na vertical, trabalhando um painel único de um dos lados e uma divisão em quatro ou mais do outro, o que permite, de uma tacada só, ter semi-splash pages que efetiva e claramente impulsionam a narrativa. As poucas vezes em que Miller divide as páginas em quadros mais tradicionais, ele o faz apenas em quatro seções horizontais, com quadros longos e geralmente para trabalhar as lutas, permitindo que um quadro “sangre” para o outro aumentando a sensação de movimento sem confundir o leitor. São nesses momentos que suas coreografias bem planejadas e limpas ficam evidentes e arrancam sorrisos até mesmo dos leitores mais exigentes.
E o próprio Wolverine ganha uma característica até então inédita: garras desenhadas como katanas. Saem os “espetos” que os desenhistas tradicionais estavam acostumados a fazer e entram as lâminas chatas, com aparência de afiadíssimas e extremamente letais. Tudo, claro, para refletir o espírito ninja/samurai incutido ao longo de todo o trabalho.
Eu, Wolverine é, sem dúvida alguma, a obra solo definitiva do herói e um dos grandes exemplos de quadrinhos mainstream de super-heróis. Claremont e Miller, além de Joe Rubinstein nas tintas, Tom Orzechowski nas letras e Glynis Wein (então casada com Len Wein, co-criador de Wolverine), em consideravelmente poucas páginas, dão o tom do futuro de Wolverine nos quadrinhos.
Eu, Wolverine (Wolverine, Vol. 1 – EUA, setembro a dezembro de 1982)
Minissérie em 4 edições
Roteiro: Chris Claremont
Arte: Frank Miller (lápis) e Joe Rubinstein (tintas)
Letras: Tom Orzechowski
Cores: Glynis Wein (Glynis Oliver)
Páginas: 93