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Crítica | Eu Vi o Brilho da TV (I Saw the TV Glow)

Rosa opaco.

por Luiz Santiago
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A diretora Jane Schoenbrun afirmou em entrevistas que a ideia geradora para o enredo de Eu Vi o Brilho da TV (I Saw the TV Glow, 2024) esteve fortemente ligada ao seu processo de transição de gênero, elencando, nos diálogos e nas situações do drama, as lutas, desejos e estabelecimento de vida, numa perspectiva simbólica e de fantasia, às vezes cercando o gênero terror. A estética empregada pela cineasta aqui é uma recorrência artística desde o seu longa de estreia, A Self-Induced Hallucination (2018), passando também pelo seu segundo longa, We’re All Going to the World’s Fair (2021). Telas, tecnologia, ambiente macabro, luz azul e questões de identidade e sentimentos marcam a sua trajetória visual e temática, alcançando, em Eu Vi o Brilho da TV, o seu ponto mais maduro, como conjunto (mesmo com um resultado ruim).

A forma muito lenta como a diretora guia a história tem um propósito claro: estabelecer com cuidado a interação diegeticamente “imperceptível” entre a realidade de Owen (Justice Smith) e Maddy (Brigette Lundy-Paine). Os primeiros sinais dessa interação estão nas cenas iniciais do filme, mas o espectador só vai entender isso mais adiante. No primeiro ato, quando o texto cria a mitologia em torno da série The Pink Opaque e, junto a ela, o laço que unirá Owen e Maddy, o andamento mais lento não tem peso negativo, pois o espectador entende que existe ali um propósito de relação entre mundos se construindo e todo o processo está claro em sua intenção — a despeito da grande quantidade de símbolos e interpretações que podem ser feitas para a situação como um todo. É só na segunda metade que isso se torna negativo para o filme, tanto pelo resfriamento da narrativa, quanto pelo exagero da diretora na exposição dos enigmas, tornando a obra um labirinto que, de tantos nós cegos, termina por sufocar-se.

Justice Smith e Brigette Lundy-Paine encarnam com bastante competência os possíveis avatares protagonistas de uma série de TV… ou, para interpretações mais realistas, personagens que vivem as emoções, as provações e os boicotes que a vida impõe a indivíduos fora do padrão, da norma de uma sociedade (o reino de Mr. Melancholy). Justice Smith passa por uma transformação ainda maior, pois carrega o peso de entendimento de sua persona, de sua realidade, de seus desejos, e, ainda assim, parece sufocado por tudo. É de se lamentar que a diretora tenha mergulhado o personagem e sua adequação à realidade numa quantidade gigante de situações criptografadas que não servem à construção do drama e deixam o filme sujeito à nulidade de interpretações baseadas em escolhas aleatórias, sem um padrão indicativo que determine com exatidão a mensagem e a intenção da obra nessa criação de um duplo ser, dialogando com uma dupla realidade. A superfície dessa proposta e a tese, em si, são ótimas. Já a execução tem uma boa introdução, um desenvolvimento pouco hábil e um encerramento ruim. 

O que podemos encontrar como compensação intocável na fita é a sua excelente trilha sonora, inteiramente pensada em criar as ligações que o roteiro se recusa a fazer, expondo feridas e esclarecendo o estado de espírito da dupla protagonista, além do real momento em que eles estavam, emocional e psicologicamente. Claw Machine (Sloppy Jane) e Psychic Wound (King Woman) são os grandes destaques, porque acompanham uma das cenas mais interessantes em termos de continuidade e compensação dramática, também coroando a clara inspiração estética que a diretora trouxe de Twin Peaks: The Return (embora as piscadelas para a estética lynchiana estejam presentes em toda a película).    

Existe um limite para as indefinições de um enredo. Em Eu Vi o Brilho da TV, esse limite é ultrapassado de forma inquietante, interferindo não apenas na construção do final, mas também na idealização do personagem de Justice Smith, depois de tanto trabalho para se estabelecer. É o típico filme que tem uma primeira parte melhor que a segunda, e onde o motivo por trás de sua construção está entregue a um conceito tão etéreo e tão enigmático, que parece ter sido feito exclusivamente para ser desvendado por quem acha que cinema bom, é cinema que precisa de vídeos, manuais, dissertações e estudos explicativos de seu final e suas referências. Quando a profunda e interessante conceitualização de uma luta identitária pisoteia a unidade cinematográfica e se torna motivo de especulação extra-filme, isolada do todo, pensada e “analisada” como uma coisa distanciada, vemos que a obra perdeu. Que o cinema perdeu. E que um projeto com uma intenção tão criativa, morreu na praia, afogado em luz, cego por sua ambição de empilhar significados.   

Eu Vi o Brilho da TV (I Saw the TV Glow) — EUA, Reino Unido, 2024
Direção: Jane Schoenbrun
Roteiro: Jane Schoenbrun
Elenco: Justice Smith, Brigette Lundy-Paine, Ian Foreman, Helena Howard, Lindsey Jordan, Danielle Deadwyler, Fred Durst, Conner O’Malley, Emma Portner, Madaline Riley, Amber Benson, Albert Birney
Duração: 100 min.

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