Home FilmesCríticas Crítica | Eu Não Sou Tudo Aquilo que Quero Ser

Crítica | Eu Não Sou Tudo Aquilo que Quero Ser

Uma vida de instantes decisivos.

por Frederico Franco
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Em dado momento do filme, a fotógrafa Libuse Jarcovjakova, protagonista do documentário de Tasovska, diz: a câmera é um instrumento para navegar/viajar. E é para uma sinuosa viagem que a diretora tcheca convida o espectador ao longo de seus noventa minutos. Partindo desde o final dos anos 1960 e adentrando a década de 1980, acompanhamos, através de fotografias do acervo de Jarcovjakova, um pouco de sua vida após a tomada da República Tcheca pelo governo soviético. O filme é todo narrado em primeira pessoa pela fotógrafa, concedendo à obra um caráter intimista, extremamente particular. Aos poucos, a fotografia, antes considerada um hobby ou atividade caseira, passa a tomar forma enquanto instrumento de construir uma identidade própria e profissional da protagonista. O registro caseiro, colocado frente à lupa da diretora, acaba se revelando uma parte constitutiva da personalidade da personagem principal: seu trabalho dinâmico, expressivo, revelam uma persona inquieta, em busca de um sentido mais claro para sua vida dentro de situações político-sociais intensas e atribuladas.

Um primeiro ponto a ser notado no recorte selecionado dos trabalhos de Jarcovjakova é a produção massiva de imagens, parecendo, muitas vezes, pertencer aos tempos atuais, com o advento de mais e mais instrumentos de reprodutibilidade técnica. Tudo merece ser fotografado. Não há nada em sua vida que não possa ser registrado. Quaisquer que sejam as cenas, por mais simplórias, merecem sua atenção. Algumas, inclusive, podem ser enquadradas na categoria de disparo falso: um clique errado, gerando uma imagem nada pensada e organizada. Tudo, absolutamente tudo, no cotidiano de Jarcovjakova recebe sua atenção através da câmera. Ocorre, nesse ponto, um distanciamento do trabalho da autora tcheca daquilo que Cartier-Bresson apresenta como instante decisivo. O postulado do fotógrafo francês diz que a fotografia deve ser pensada, enquadrada com perfeição, em busca de um instante único e particular; o autor também defende uma curta produção fotográfica, valorizando esses pequenos instantes da vida cotidiana. Em Eu não sou tudo aquilo que quero ser, tudo é decisivo. Todas as minúcias da vida são instantes discursivos importantes para a construção da identidade de Jarcovjakova. Vê-se, ao longo do filme, aquilo que Barthes aponta como punctum, pequenos (e abstratos) elementos fotográficos que surgem como ruptura de uma ordem. O quadro mal equilibrado, rostos borrados, movimento: absolutamente tudo contribui para fotografias que machucam, que ferem o espectador. Jarcovjakova é pura ruptura e desejo de agressão.

As fotografias, em termos gerais, são recortes amadores, sem pretensão de embelezar ou disfarçar o cotidiano – seja ele eufórico ou melancólico. Os registros estão ali e isso que importa. A vida é capturada com todas suas nuances. Desde festas em Tokyo até a solidão na Berlim capitalista: Jarcovjakova modula seus olhares a partir das dinâmicas sentimentais que regem seus instantes. Ao mesmo tempo em que entristece ver o olhar opaco diante da melancolia da incerteza no mundo capitalista, também é reconfortante observar a protagonista esboçar sorrisos entre amigos. O primor técnico desaparece, mas não faz falta: a ruptura é mais interessante, mais expressiva. De que serve uma composição perfeita se nada nela desperta algo naquele que vê? O amadorismo expressivo de Jarcovjakova é a abordagem perfeita para produzir no espectador aquilo que ela sentiu ao realizar o recorte fotográfico. 

Um tópico central abordado durante o filme são duas situações de gravidez passadas pela protagonista. Em ambos os casos Jarcovjakova lutou pelo direito do aborto, mas se viu dependente de uma liberação expressa pelo governo. Seu próprio corpo, aquilo que tem de mais íntimo, não lhe pertence, estando sob o domínio do estado. A maneira como Jarcovjakova fotografa seu corpo é, no mínimo, curiosa. Imagens pouco claras, desfocadas, mal iluminadas. Aparentam terem sido tiradas às pressas, escondidas, como se o domínio do corpo fosse algo ilegal. É marcante, também, que entre suas fotografias nuas, não a vemos por inteiro, apenas partes, fraturas. Como se houvesse, no âmago da protagonista, uma espécie de vergonha, medo.

Nos primeiros instantes de Eu não sou tudo aquilo que quero ser, é revelado que a mãe da protagonista lhe avisa: não é momento para a arte, alegando haver preocupações mais urgentes que a produção de fotografias. Realmente, as urgências políticas e sociais da República Tcheca dos anos 1960 são um destaque importante na realidade de Jarcovjakova. No entanto, discordando da mãe da protagonista, é nesses momentos que a arte floresce, seja como denúncia ou como resistência. E as fotografias não fogem dessa lógica, muito menos o trabalho da personagem central do documentário. Seus recursos formais não são mera casualidade. São recortes específicos de uma realidade social marcada pela dúvida, pela incerteza e pela falta de pertencimento. As fotografias de Jarcovjakova são como os vagalumes de Didi-Huberman: são um recorte do cenário político maior, servindo como lampejos de contra-poder. É em realidades políticas conturbadas que o ser humano enquanto ser social transcende sua forma é se torna vagalume, resistente. Jarcovjakova é um exemplo central disso, contribuindo, através de sua fotografia, com um intenso brilho.

Eu não sou tudo aquilo que quero ser (Ještě nejsem, kým chci být) – Áustria, República Tcheca, Eslováquia, 2024
Direção: Klara Tasovska
Roteiro: Klara Tasovska, Alexander Kashcheev
Elenco: Libuse Jarcovjakova
Duração: 90 min.

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