Embora o debate e as manifestações artísticas e de rua sobre preconceito e a segregação racial jamais tenham saído de cena, há momentos em que elas são reforçadas e incham diante de eventos em seu próprio interior ou por questões históricas específicas, notadamente as que ameaçam de maneira ideológica, física ou legal as conquistas obtidas até então. Podemos dizer que o movimento Black Lives Matter (BLM) em 2013 e a ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, que o levou ao poder em 2017, marcaram uma nova onda de movimentos sociais, filmes, séries, artigos, músicas, livros, peças, passeatas, petições online e hashtags a respeito da negritude e condições de vida do negro nos Estados Unidos. Esse impulso também tem um outro lado, o crescimento de ondas de ódio e grupos racistas e segregadores, uma vez que movimentos sociais sempre arrastam seus desafetos à medida que vêm a público mostrar sua realidade.
Eu Não Sou Seu Negro (2016) faz parte dessa safra de documentários que ressuscitam eventos da história americana para pensar a saga e as relações sociais que aquele país teve com as etnias que formam sua população. E o número de vertentes e opiniões documentadas sobre as condições da comunidade negra nos EUA — ou sobre quem lhes é contrário — é cada vez maior desde 2013, quando a “nova onda” começou. Desse período, podemos destacar documentários como Anita (2013), Deixe Queimar (2013), Freedom Summer (2014), The Black Panthers: Vanguard of the Revolution (2015), What Happened, Miss Simone? (2015), Welcome to Leith (2015) e A 13ª Emenda (2016), obras que mostram desde indivíduos que pregam a supremacia branca até horrores e violência cotidiana motivadas por questões de raça.
Dirigido por Raoul Peck, cineasta experiente e com diversos títulos com essa temática social, Eu Não Sou Seu Negro é a “biografia de ideias” do escritor e ativista americano James Baldwin (1924 – 1987). O roteiro “escrito” por Baldwin é, na verdade, o que ficou pronto do manuscrito Remember This House, memórias do autor sobre seus encontros, amizade e ideias de três líderes bastante distintos da causa dos Direitos Civis, Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr.
O roteiro engata de imediato a ideia de luta por direitos iguais e, amparado por uma excelente trilha sonora, começa a refletir sobre a história recente (anos 1950 em diante) da população negra nos Estados Unidos. O tema, que não é novidade para o espectador, ganha novas camadas porque faz um inteligente diálogo entre discursos e táticas do passado e com os horrores urbanos e propostas de luta contra essa situação ainda persistente, mesmo com todo o avanço na área dos direitos civis e mesmo os Estados Unidos tendo sido governado por um homem negro durante 8 anos.
As melhores partes do filme estão nos discursos de Baldwin, sejam eles lidos por Samuel L. Jackson, o narrador da fita, ou em vídeos do próprio autor em muitas de suas palestras ou entrevistas para a TV. Suas ideias tentavam conciliar vertentes opostas dentro do ativismo negro e consideravam ingredientes históricos, sociais, políticos e culturais (incluindo aqui a religião) para denunciar a analisar atitudes da “maioria branca”. O formato do filme, do meio para o final, acaba não favorecendo muito esse conjunto de pensamentos, porque a edição interrompe um pouco o diálogo com o futuro e demora tempo demais em planos de contexto, que mesmo com a narração de fundo, não foram a melhor escolha do diretor. Mas não se enganem, a montagem do filme tem momentos excelentes e brinca com percepções dialéticas, muitas vezes gerando intensas críticas apenas por juntar uma fala e uma imagem contrastante ou contrapor uma imagem de riqueza e opulência do “sonho americano” a outra de um homem negro sendo espancado por um grupo de 9 pessoas, alguns deles com porrete.
Mas há uma parte do discurso de Baldwin que parece… solto no filme, e muita coisa do que ele expõe como revolta pode parecer ininteligível para alguns espectadores, simplesmente porque tiraram de cena o fato de o escritor ser homossexual. E sim, isso tem uma importância enorme para a forma como ele guiará o seu ativismo. Exceto pelo momento onde ele cita “Lucien” em uma viagem a Porto Rico ou na cena sobre o “beijo oculto no cinema americano” o filme parece “limpar” o fato de que o ativismo de Baldwin esteve influenciado pela forma como ele também via o preconceito diante dos homossexuais, e pior, tornava-se uma certa “luta interna” dentro do ativismo negro, onde ele encontrou bastante resistência. Um homem compartimentado… que batalhava em diferentes causas, sobre as quais ele falava, teorizava e que faziam parte de sua vida, mas que de alguma forma não “podiam” ou “podem” estar juntas.
É bastante triste que uma biografia deixe isso passar, especialmente uma que traz para as telas a vida de um autor que escreveu sobre amor gay e tentou ao máximo fugir do preconceito público e impedir que seu ativismo dentro da comunidade negra fosse afetado, vide a entrevista dada a Dick Cavett, onde ele sugere que tinha esposa e filhos. O filme passa brevemente por um relatório do FBI que diz que Baldwin PODERIA ser homossexual, mas a coisa fica por aí. Se estivéssemos falando de um autor cuja sexualidade não tenha influenciado sua obra e seu ativismo, o ocultamento ou silêncio disso poderia ser um “descuido perdoável”, mas não é o caso aqui. A homo e bissexualidade estiveram nos livros de Baldwin ao lado de críticas à vigilância da sociedade em relação às escolhas alheias, ao racismo e às tradições que alguns fingiam seguir em público mas quebravam-nas em sua vida privada.
Não é de se espantar que ativistas negros e abertamente gays como Bayard Rustin (1912 – 1987), um dos principais organizadores da Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade (1963) seja tão marginalizado na história do ativismo negro e tenha ficado de fora até como citação no documentário. Fiquei espantado e feliz ao mesmo tempo que tenham reservado um espaço Lorraine Hansberry no filme, a única mulher ativista (pelos direitos civis e LGBT) fora do ciclo do trio de amigos de Baldwin que ganhou menção de suas ações dentro da comunidade negra.
À parte essa problemática ocultação ou “desprezo” por um lado da vida do biografado (alguns espectadores verão isso com olhos ainda mais negativos e eu não os culpo) Eu Não Sou Seu Negro é um excelente ponto de partida para a discussão de uma questão atual como fruto de uma sangrenta História. O filme expõe ideias do ativismo considerada polêmicas (e é muito bom ver mais este lado mostrado para o público, muito para quebrar a ideia das massas de que ativismo — qualquer um deles! — é tudo uma coisa só, com uma “central de comportamento” e livros de regras que todos devem obedecer à risca) e nos convida a pensar sobre as ações de uma nação para com seus próprios filhos. Todas as contradições do horror do racismo aparecem sem precisar de muita coisa e as frases finais da obra resumem todo o seu intento, trazendo em si a realidade de muitas e muitas nações ao redor do mundo.
A história do Negro nos Estados Unidos é a História dos Estados Unidos.
E ela não é uma história bonita.
Eu Não Sou Seu Negro (I Am Not Your Negro) — França, EUA, 2016
Direção: Raoul Peck
Roteiro: James Baldwin
Elenco: Samuel L. Jackson (narração) e arquivos com aparições de James Baldwin, Dick Cavett, Shumerria Harris
Duração: 93 min.