Lançado poucos meses antes da assinatura do Tratado de Versalhes, Eu Acuso! (J’accuse!) carrega uma urgência inimitável, saindo das trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) com uma abordagem de caráter parcialmente documental que atravessa o tempo e nos atinge com imensa força. Estamos diante de uma obra concebida em meio às notícias do front e às cicatrizes pessoais do próprio diretor e roteirista Abel Gance — convocado para a Section Cinématographique do Exército Francês, dispensado por problemas de saúde e, ainda assim, retornando à linha de frente para filmar. Essa proximidade do diretor com a guerra transformou o filme numa denúncia visceral contra o conflito, confrontando os horrores do campo de batalha e a indiferença de uma sociedade que assistiu, de longe, ao sacrifício de toda uma geração. Gance expõe sua visão pessimista, mas profundamente humana e sentimentalmente amplificada pela autenticidade crua de cenas como as que ele gravou durante a Batalha de Saint-Mihiel, ao lado do Exército dos Estados Unidos, em setembro de 1918.
A narrativa se constrói em torno de um triângulo amoroso que, embora meio batido (eu até entendo quem gosta um pouco menos do filme por causa dele), abre caminho para algo maior: a jornada de François Laurin (Séverin-Mars), um homem de temperamento violento e ciumento, e Jean Diaz (Romuald Joubé), um poeta sensível apaixonado pela esposa de François, Édith (Maryse Dauvray). Os dois homens brigam, mas voltam a se encontrar nas trincheiras, onde as rivalidades pessoais se dissipam. O que começa como um melodrama provinciano, com os habitantes celebrando a declaração de guerra à França em agosto de 1914, logo se transforma numa destruição coletiva. Édith é enviada para Lorraine, capturada e violentada por soldados alemães, enquanto François e Jean, agora camaradas no front, enfrentam juntos a guerra. Gance vai do drama íntimo ao caos externo, usando a tensão pessoal entre os militares como adicional aos horrores que os cercam. A insanidade de Jean, desencadeada pelo choque da guerra (estresse pós-traumático), e a morte de François em batalha são afuniladas para uma sequência chocante e inesquecível dos mortos retornando para julgar os vivos.
J’accuse impressiona como um laboratório de experimentos desafiadores, e às vezes é difícil crer que se trata de um filme de 1919, feito quando o cinema ainda organizava suas estruturas de linguagem. As cenas nas trincheiras, filmadas com uma câmera móvel entre os escombros; a excelente exploração da profundidade de campo; as sobreposições que misturam o real e o onírico e a montagem cheia de indicações simbólicas e diferentes ritmos internos e externos ao filme — algo que Gance refinaria em A Roda (1923) e Napoleão (1927) — criam uma experiência sensorial que traduz muito bem a inquietação psicológica da guerra. A “marcha dos mortos”, filmada com 2.000 soldados reais em licença do front — muitos dos quais morreriam semanas depois, em batalha –, carrega uma potência avassaladora, amplificada pelo peso histórico de homens que interpretavam o próprio futuro. A fotografia assinada por Marc Bujard, Léonce-Henri Burel e Maurice Forster faz milagres na construção de atmosferas, com cenas introspectivas cheias de palpável melancolia, uso de íris para destaque dramático na lente e aplaudível escolha de angulação nas cenas de combate. As animações rudimentares que evocam as visões de Jean, equilibrando o documental e o lírico imaginativo, misturam sentimentos e técnicas diferentes do cinema, trazendo também uma mescla de sentimentos para o público.
Mais do que uma crítica à guerra, o filme aponta o dedo para as estruturas que a sustentam, ecoando o “J’accuse” de Émile Zola para acusar não só o Estado francês, mas todos os que, de forma moral, econômica, prática ou ideológica, apoiaram o conflito. Quando Jean reúne os aldeões e invoca os mortos para confrontá-los, Gance expõe a cumplicidade dos civis que viveram alheios às trincheiras ou esqueceram o real significado do conflito, banalizando as mortes ou criticando quem não podia (ou não queria) ir para o front. A marcha silenciosa dos soldados ressurgidos dos túmulos pelas paisagens de Provence pisoteia o nacionalismo, questionando se os vivos eram dignos do sacrifício dos que tombaram. Há uma tensão rica aqui, entre um pacifismo intenso e ecos de patriotismo, como se Gance buscasse condenar a guerra e, ao mesmo tempo, celebrar a resiliência de quem a enfrentou — uma ambiguidade que mantém a obra aberta a leituras diversas.
A estreia do filme em 1919, sob o impacto imediato do armistício, foi um sucesso na França, onde o público viu suas feridas refletidas na tela, e logo conquistou o mundo, chegando a Londres, com orquestra e coral nas salas, e aos Estados Unidos, onde D.W. Griffith garantiu sua distribuição (lembrando que o americano tinha realizado, em 1918, o filme Aos Corações do Mundo, também ambientado na 1ª Guerra). Diferente de obras como Nada de Novo no Front (1930) ou Glória Feita de Sangue (1957), que focam na desumanização do soldado, Gance amplia o olhar para a responsabilidade coletiva da sociedade, utilizando seu filme como ferramenta de reflexão antropológica, capturando o espírito de uma era e projetando-o adiante.
No desfecho, Jean, sozinho, rasga seus poemas em desgosto e confronta o Sol — acusando-o de testemunhar em silêncio os crimes da guerra — antes de sucumbir à escuridão que engole o quarto e… sua existência. Esse gesto, carregado de niilismo, coloca o filme num patamar onde a guerra se torna mais que um evento histórico: uma falha civilizacional que expõe a fragilidade de nossos valores e a indiferença do universo às pessoas de todos os gêneros e idades que irão explodir, queimar e sangrar, sendo boa parte delas, civis inocentes. Mais de um século depois, Eu Acuso! / J’accuse! segue como um espelho incômodo, desafiando-nos a ouvir a acusação alegórica daqueles 2.000 soldados que marcharam para a câmera de Abel Gance e, dias depois, para sua própria a morte. Não é apenas a guerra que está em julgamento aqui, mas a nossa capacidade de lembrar, sentir e mudar, diante das vítimas diretas e indiretas da guerra (nós mesmos, inclusive) fazendo perguntas que, como o Sol mudo que presencia a derrocada de Jean, nos encara, aguardando uma resposta que talvez nunca chegue.
Eu Acuso! (J’accuse!) — França, 1919
Direção: Abel Gance
Roteiro: Abel Gance
Elenco: Romuald Joubé, Maxime Desjardins, Séverin-Mars, Angèle Guys, Maryse Dauvray, Mancini, Elizabeth Nizan, Pierre Danis, Blaise Cendrars, Paul Duc
Duração: 165 min.