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Crítica | Estômago (2007)

Antropofagia cômica.

por Fernando JG
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Quando fitei-o de novo, ele estava em plena glória do jantar, mastigando de boca aberta, passando a língua pelos dentes, com o olhar fixo na luz do teto. Eu já ia cortar a carne de novo, quando o vi parar inteiramente.

O Jantar – Clarice Lispector. 

Depois de chegar em São Paulo após uma cansativa viagem, Raimundo Nonato (João Miguel) encontra-se na típica situação do homem migrante que, sem dinheiro e sem família, vaga pelas ruas da cidade na tentativa de encontrar alguma oportunidade pequena que seja. Cansado depois de muito caminhar, senta-se num bar, bebe um copo d’água e come duas coxinhas velhas que estavam na vitrine de um bar insalubre. Sem dinheiro para pagar o consumido, acaba ficando por ali para trabalhar na cozinha e ajudar Zulmiro, dono do estabelecimento (Zeca Cenovicz). A revelação do seu dom para a culinária atrai uma grande clientela que passa a estimar o trabalho de Raimundo, criando vínculos que alteram para sempre sua vida dali em diante. 

Evidentemente, o filme de Marcos Jorge destaca-se na cinematografia brasileira pelo seu original efeito de estranhamento estético aplicado ao estudo da realidade nacional numa mistura imprevisível de gêneros cinematográficos: drama, comédia, suspense e horror. Ao abordar o homem quase que exclusivamente por meio de sensações e recursos sinestésicos, colocando-o num estágio primitivo dentro de uma sociedade moderna, o cineasta avança na contribuição para o cinema brasileiro com novas perspectivas de se trabalhar o dado local que não fosse estritamente por meio do drama migrante do tipo A Hora da Estrela, que é avassalador, mas encerra numa proposta realista. 

Ao mesmo tempo em que a película nos une ao enredo pelo habitual ato de comer, igualmente ela nos afasta com repulsa pelo excessivo fetichismo da forma como se come. Se há algum dado que remarque a característica mais fundamental da obra do cineasta é o fetiche na gula, como no conto de Clarice Lispector que concebe a epígrafe deste texto. Ver comer, ouvir mastigando, sentir a massa alimentícia caminhando de um lado para o outro da boca nos causa mal estar como efeito retórico. Tudo isso está atrelado à forma como pinta a descrição do ato. O cinema é pintura (ut pictura poiesis) quando descreve, com precisão focal, uma ação ou uma paisagem. O recurso estético assemelha-se aos utilizados por Yorgos Lanthimos e Claire Denis: é fazer-nos dar de cara com o grotesco da nossa própria natureza. 

O mal estar na película é dado desde o primeiro momento quando Raimundo chega à cidade grande. Deslocado, o sentimento de desconforto já é o princípio ativo do mal estar social. Não por acaso Marcos Jorge transforma Raimundo numa espécie de Augusto Matraga: herói e anti herói. Mas se Matraga morre para poder renascer, Raimundo Canivete mata para poder ascender. O cineasta lê o homem a partir da natureza, animalizando-o, transformando todos os seus afetos em instintos, provocando sentimentos de excesso, do sexo à gula. 

É ao mesmo tempo predador e presa de si mesmo. Neste sentido, o homem seria lobo do homem (homo homini lupus est) porque está sempre em atitude predatória em busca de poder, de modo que chegar ao topo desta cadeia alimentar, ou da beliche que hierarquiza as posições dentro da cela, é o objetivo deste a quem a ingenuidade e a maldade caminham lado a lado. Mas seria ingênuo acreditar numa maldade intrínseca ao homem quando o principal agente dessa tomada de consciência pelo mal se dá na introdução de Raimundo na cidade grande. Parece ser esse o lugar em que aquilo que tem de pior vem à tona. É ainda o meio enquanto agenciador do processo social que o torna aquilo que vem a ser. O conflito entre sujeito e cidade é a chave reveladora da trama. Raimundo é aluno de uma espécie de escola negativa. 

Raimundo não é para sempre inocente como fora quando da sua chegada a São Paulo. O que ocorre é um processo de degradação ou evolução natural. Ele sabe que o preparo de pratos sofisticados e o bom uso de sua habilidade técnica pode ser um meio de manipular sua influência no meio em que convive, o que geraria benefícios a si próprio. Seu olhar ingênuo num primeiro ato passa a um olhar profundo e malicioso, de quem sabe que está construindo paulatinamente a sua glória. 

O arco biográfico de Raimundo é impecável e a construção do seu éthos é a razão do filme: uma porque todas as suas ações são justificadas no enredo, e depois porque para explicar a trajetória do herói o cineasta amplia a narrativa para um duplo estudo de tempo: o presente da enunciação e o passado que justifica o presente de Raimundo na cadeia. Em ambos os casos, as ações de Raimundo são idênticas e seja na prisão ou seja no asfalto, ele elimina um por um a fim de conquistar seus objetivos. Por isso a sua história é a narração de como alguém se torna aquilo que é. 

Embora exista de fato uma trama correndo na tela, percebe-se que uma das discussões que o cineasta está propondo é a do fazer artístico. É uma reflexão sobre o ato da criação. Raimundo é o artista e sua culinária é o produto de sua arte. Arte, neste sentido, é ars, técnica, construção e feitura de algo que gera contemplação e prazer. Imediatamente todos se apaixonam pelo talento de Raimundo, que alcança lugares nunca antes imaginados devido ao seu engenho. A figura do artista, desde o século XVIII, tem sido relegada a esse lugar de deslocamento, de não-lugar. A imagem que temos dos poetas e pintores é a desse gênio incompreendido, caminhante e sobretudo errante. A construção do personagem de João Miguel passa deliberadamente por essa discussão, por isso há tantas referências à técnica, habilidade e à arte no filme. A culinária é uma metáfora, quando não uma alegoria para o próprio filme enquanto objeto artístico. 

Caberia ainda considerações sobre os personagens de Fabiula Nascimento e Babu Santana, que servem como mola propulsora para Raimundo. À personagem feminina cabe um duplo papel de duplo sentido: ser alimentada e alimentar. É a prostituta que termina sua trajetória na cena mais emblemática de todo o longa-metragem; Babu Santana provoca tanta verossimilhança que é sempre fácil odiá-lo na interpretação de seus papéis.

Se é verdade que o cinema brasileiro amparou-se durante seus anos de ouro na chamada “estética da fome” glauberiana, cujas preocupações atravessavam o realismo da seca nordestina para evidenciar um problema umbilical na formação do Brasil, o filme de Marcos Jorge aposta num antônimo, isto é, na estética da gula enquanto princípio estrutural do filme, ainda que a gula não seja sinônimo de riqueza, mas de miséria e desespero. Lançando-se pela via do canibalismo e da antropofagia, Estômago ecoa vagamente Desejo e Obsessão para discutir, à sua própria maneira, os problemas locais e universais do gênero humano numa película versátil, altamente irônica, perversa mas sobretudo consciente dos limites e das possibilidades de sua trama. 

Estômago (Brasil, Itália, 2007)
Direção: Marcos Jorge
Roteiro: Fabrizio Donvito, Marcos Jorge, Lusa Silvestre, Cláudia da Natividade
Elenco: João Miguel, Fabiula Nascimento, Babu Santana, Carlo Briani,  Zeca Cenovicz, Paulo Miklos, Jean Pierre Noher
Duração: 100 min

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