O período natalino visto com desconfiança por um de nossos maiores expositores da literatura moderna brasileira, Carlos Drummond de Andrade. Assim é a crônica Este Natal, escrita em 1966, publicada originalmente no Jornal do Brasil, também inserida na coletânea Caminhos de João Brandão, de 1970. Com uso sofisticado da ironia, o escritor mineiro reflete a perda do suposto sentido básico dos festejos natalinos, uma era que por convenção, se tornou conhecida pela solidariedade, amor ao próximo, entrega de corpo e alma ao painel de boas ações coletivas, dentre outras coisas. Para Drummond, o Natal se perdeu, pois logo na abertura de sua crônica, o personagem João Brandão observa, com espanto, a detenção do Papai Noel, figura carregada para o distrito por dois policiais. Ele se questiona: se até o bom velhinho é uma figura fora da lei, o que será dos demais cidadão, então? É algo para temer e, óbvio, analisar.
Logo fica esclarecido que ali não era o personagem familiar, conhecido por distribuir presentes. Se travava de um criminoso que utilizava os trajes icônicos para aplicar golpes e roubar pertences alheios. Da mesma forma que acabou a confiança no Papai Noel, também não podemos mais acreditar nas palavras de um bispo ou na coragem de um astronauta. É o que se indaga João Brandão, numa caminhada contínua que ainda traz outras interrogações que se tornarão constantes. Até do Menino Jesus há desconfiança, segundo o personagem, ao relatar as reclamações de um gerente de loja que tem reclamado do movimento, aparentemente mais baixo por causa da presença de tantos malandros e vigaristas a tentar se aproveitar dos transeuntes, num período que se transformou em relacionamentos de desamor, com pessoas sempre com o pé atrás, amedrontadas pela ausência de sentimentos sinceros, de qualquer vestígio de bondade genuína. Em linhas gerais, o narrador alerta: seria melhor suprimir o Natal.
Inspirada em situações do cotidiano, Este Natal é uma crônica que transpira o estilo de Carlos Drummond de Andrade, uma figura marcante de nossa literatura, conhecido por, dentre tantas coisas, analisar a humanidade fragmentada na tessitura da modernidade. Numa análise dos reflexos das mudanças nas relações sociais, o escritor propõe, com base na observação do personagem que intitulada a coletânea, uma mudança para o período natalino, numa perspectiva que deixe de lado o afã habitual desta comemoração para nos dedicarmos ao Natal sem muitas expectativas, talvez nenhuma. Já que acabou a confiança, haja vista o tanto de pessoas nada ilustres, o ideal seria cancelar os festejos natalinos e abolir as hipocrisias que geralmente tomam de assalto a todos no mês de dezembro, para depois dar lugar aos comportamentos ao longo de todo ano. Eis uma das leituras possíveis desta crônica que tal como qualquer texto literário, permite um feixe de interpretações que vão muito além do proposto por aqui.
Conhecido por ser uma etapa do calendário com decorações peculiares, vitrines arrojadas, peças publicitárias focadas no estabelecimento do consumo mais massivo, dentre outros dispositivos que trocam o ideal de generosidade, apego familiar e melhoria nos relacionamentos, as emoções natalinas são retratadas com criticidade pelo discurso de Drummond nesta crônica, numa análise que nos permite, ao menos para quem já leu, as propostas filosóficas de Bauman sobre individualismo, fragmentação dos laços que conectam os seres humanos, posturas que levaram ao processo de decadência da solidariedade. Ademais, dentre outras conexões reflexivas permitidas pela crônica, podemos trazer como associação, a descaracterização do período natalino em nossa cultura, numa importação um tanto deslocada, mas tão desejada pelos ditames da globalização, dos costumes alheios, em especial, europeus e estadunidenses. A imposição comercial também é um tópico temático que atravessa todas essas possibilidades reflexivas. Em sua crônica, Drummond estabelece um discurso coeso e humorado sobre o comportamento humano lá na década de 1960. Desastroso é revelar que quase nada mudou.
Este Natal (Brasil, 1970)
Autor: Carlos Drummond de Andrade
Editora original: José Olympio
1 página