Zerocalcare, nom de plume do cartunista italiano Michele Rech, vem galgando com vigor as escadas da fama e, além de seus quadrinhos terem, nos últimos anos, angariado sucesso para bem além das fronteiras de seu país natal (infelizmente, no Brasil, apenas uma graphic novel dele foi lançada quando da publicação da presente crítica), ele conseguiu emplacar sua segunda série animada no Netflix, depois da sensacional Entrelinhas Pontilhadas, de 2021. Este Mundo Não Vai me Derrubar é, da mesma forma, uma relevante abordagem semiautobiográfica (ou, talvez, completamente autobiográfica) que usa artifícios narrativos semelhantes aos da obra anterior, ou seja, o enquadramento da história ao redor de um pequeno mistério e a não-linearidade.
Também como Entrelinhas Pontilhadas, trata-se de uma obra que dá aula de estrutura narrativa e que é capaz de condensar uma infinidade de assuntos que vão do micro ao macro em um piscar de olhos, exigindo concentração do espectador para que o fio da meada não seja perdido entre uma olhada no celular e outra (e, se você faz isso durante uma experiência audiovisual, por pior que ela seja, eu sinto muito). São dois os panos de fundo de Este Mundo Não Vai me Derrubar, o retorno do grandalhão Cesare (voz de Zerocalcare) à vida do protagonista depois de uma ausência de 20 anos em que ele passou em uma clínica de reabilitação de viciados em drogas e a criação de um abrigo de refugiados no subúrbio de Roma onde mora que é alvo do ódio de um grupo nazista que passa a afixar cartazes nacionalistas por todo o lugar.
Obviamente, os dois assuntos se interpenetram e convergem na curta série de seis episódios que parte de Zerocalcare falando sem parar em uma sala de interrogatório da polícia. No entanto, o tratamento que eles ganham é exemplar, pois foge do binarismo e do uso de clichês. Com isso, quero dizer que seria muito fácil simplesmente nos fazer compadecer por Cesare, mas, para começo de conversa, ele é enquadrado como alguém que, no passado, usou sua força para ajudar Zerocalcare sobreviver ao bullying, o que criou um laço de amizade entre os dois. Mas o próprio Cesare é, no fundo, um bully e sua conexão com o protagonista é caracterizada por hesitação de ambos os lados, seja o de Cesare em mostrar que tem sentimentos a Zero, seja Zero aceitar quem Cesare é sem ter o aparato psicológico para tentar mudá-lo. A ambiguidade desse relacionamento, que vemos por intermédio de flashbacks para vários momentos do passado de Zero e de seus amigos Sarah (também voz de Zerocalcare no passado e de Chiara Gioncardi no presente), sua bússola moral, e Secco (Zerocalcare e Paolo Vivio), silencioso, mas direto quando fala, é precioso e o autor e protagonista não tem nenhum pudor em fazer autopenitência e a julgar-se inclusive por fazer autopenitência e por ter alcançado o sucesso e encontrado um norte em sua vida que seus pares nunca conseguiram (ele ataca até mesmo sua dicção, aliás com razão, porque ele é mestre em engolir palavras em meio à metralhadora italiana de sua fala).
Mesmo no caso dos nazistas, a abordagem não é simplista e rotineira. Sim, não há como não odiar irrestritamente esses desgraçados, e Zerocalcare não nos pede isso, mas ele evita a todo custo torná-los um problema isolado, algo que existe como em um evento de geração espontânea. Há um trabalho veloz, mas muito bem concatenado e eficiente de contextualização histórica que lida com a questão de maneira holística, olhando para a política, para a economia e para a sociedade como um todo, ainda que, claro, voltado à Itália em primeiro lugar, mas perfeitamente aplicável a diversos outros países de uma maneira ou de outra e, ao mesmo tempo, sem perder de vista o aspecto autobiográfico da série. Espanta-me como Zerocalcare consegue lidar com tanta coisa ao mesmo tempo e em tão pouco tempo, mas ele realmente consegue e o resultado é, novamente, de se tirar o chapéu, com até mesmo sua consciência na forma de Tatu (Valerio Mastandrea) ganhando um papel mais endógeno à história sendo contada.
O design de produção emula a bela e caricata arte em quadrinhos do autor, com uma animação em computação gráfica cuidadosa e expressiva, que mescla muito bem os personagens humanos com os não-humanos da imaginação febril de Zerocalcare (a explicação para os personagens que são dinossauros e a divisão “animalesca” da Câmara de Vereadores da cidade são geniais), tudo embalado pela excelente trilha sonora composta por Giancane, que inclui a música-tema Sei in un Paese Meraviglioso, também título do álbum, e pelas canções escolhidas à dedo (The Cure, The Clash, Lou Reed, Oasis e assim por diante) e que são polvilhadas cirurgicamente ao longo do vai-e-vem temporal da narrativa. E é claro que o trabalho de montagem é o ponto alto de tudo, pois é ele que consegue imprimir o ritmo da história sem que a enorme quantidade de informações se perca, isso depois, claro, que o espectador se acostuma com o bombardeio inicial.
Apesar de achar que o final de Este Mundo Não Vai me Derrubar poderia ter sido melhor, talvez mais completo e circular, Zerocalcare sem dúvida acertou novamente em sua parceria com o Netflix que, espero, seja longeva e leve a outras minisséries e até mesmo a adaptações de seu material em quadrinhos. São poucas as obras que são realmente capazes de empacotar tanta coisa em uma minutagem tão acanhada sem sacrificar absolutamente nada e o que o fumettista italiano faz, pela segunda vez seguida, merece aplausos.
Este Mundo Não Vai me Derrubar (Questo Mondo Non mi Renderà Cattivo – Itália, 09 de junho de 2023)
Criação: Zerocalcare
Direção: Zerocalcare
Roteiro: Zerocalcare
Elenco (vozes originais): Zerocalcare, Valerio Mastandrea, Paolo Vivio, Chiara Gioncardi, Ughetta d’Onorascenzo, Silvio Orlando, Gianluca Cortesi, Gianluca Crisafi, Michele Foschini, Sara Labidi, Stefano Thermes, Graziella Polesinanti
Duração: 173 min. (seis episódios)