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Crítica | Estado Elétrico, de Simon Stålenhag

Um melancólico, mas belíssimo futuro do passado.

por Ritter Fan
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O artista sueco Simon Stålenhag começou sua carreira comercial vendendo pela internet suas magníficas ilustrações digitais fotorrealistas que primordialmente materializavam um futuro retrofuturista, seguindo daí para lançar duas obras que fundiram sua arte com narrativa textual, criando um meio termo entre quadrinhos e literatura que talvez possamos definir como “livro ilustrado”, mas sem a ideia de que se tratam de obras para criança como essa expressão costuma indicar. Nascia, então, Tales from the Loop (Ur Varselklotet), em 2014, e Things from the Flood (Flodskörden), em 2016, ambas passadas em um mesmo universo e com parte do material adaptado em forma de uma belíssima minissérie lançada pelo Prime Video, 2020. Para seu terceiro projeto desse tipo – e primeiro que se passa nos EUA – ele recorreu com sucesso à uma campanha de financiamento coletivo no Kickstarter, depois de usar a plataforma para também financiar um RPG baseado em suas obras anteriores e Estado Elétrico (Passagen) é o assombroso resultado.

Quem por acaso tiver assistido a adaptação cinematográfica The Electric State, lançada pelo Netflix, é importante saber que o livro é completamente diferente em sua execução, infinitamente mais intimista e melancólico e definitivamente não indicado para crianças pequenas. Nele, uma jovem e um robô cabeçudo fazem uma misteriosa jornada pelo oeste distópico dos Estados Unidos na segunda metade de uns anos 90 alternativo em que um conflito de largas proporções deixou destroços por todos os lugares, com a população humana fugindo para mundos virtuais proporcionados por um capacete de realidade virtual aparentemente desenvolvido por uma empresa chamada Sentre. Em paralelo, com fonte em negrito, acompanhamos a história de alguém ainda mais misterioso que parece ser um soldado que, porém, nunca realmente vemos.

Estruturalmente, a narrativa já começa com a ação em movimento e em nenhum momento para para explicar o que aconteceu e o que está acontecendo. Até mesmo o nome da protagonista (Michelle) e seu gênero (uma jovem mulher) demoram a ser definidos seja pelo texto, seja pela ilustração. Na verdade, até mais ou menos metade da obra, o leitor só sabe que Skip, o personagem que a acompanha, é um robô, em razão das ilustrações, já que não há pistas claras nesse sentido no texto. Mas é relevante deixar claro que, enquanto o mistério é importante, a atmosfera criada por Stålenhag é muito mais, já que ele cria um mundo desesperançoso, em que a humanidade entregou-se à tecnologia, e que o leitor vai aos poucos compreendendo e fazendo as necessárias e inevitáveis conexões com o mundo real à sua volta. É como uma jornada pelo inferno, um inferno renderizado linda e originalmente pelo autor, sem dúvida, mas mesmo assim um inferno que pode ser, quem sabe, um de nossos futuros.

Outro aspecto alvissareiro da obra é que não há ação. Ou melhor, não há ação para além do estritamente necessário para impulsionar a narrativa, como Michelle furtando um automóvel deixado à beira da estrada por um casal de senhores morto há algum tempo, ela e Skip pernoitando em um motel e outros momentos prosaicos assim. Stålenhag, com isso, nada na contramão de obras literárias modernas que fazem de tudo para ser não muito mais do que roteiros de filmes frenéticos de ação, com o autor focando em sua protagonista e deixando-a, em primeira pessoa, lentamente contar sua história tanto no presente quanto no passado, algo que aos poucos vai convergindo para um final doloroso cuja arte vem para complementar e tornar tudo ainda mais bonito e melancólico.

Falando na arte, além do que já mencionei sobre ela, é relevante mencionar que Stålenhag trabalha com painéis únicos, sem texto, cada um ocupando uma página inteira na orientação de paisagem, ou seja, no formato cinematográfico widescreen. Mas o mais importante é que a arte não é o principal. Sim, ela é chamativa e irresistível, merecendo tempo dedicado à sua admiração, mas o que quero dizer como ela não ser o principal é que o autor encontra o exato equilíbrio entre texto e imagem, não fazendo um depender do outro e sim criando uma simbiose complementar invejável, coisa que é raro até mesmo de encontrar em autores de HQs com essa perfeição. E os textos não são legendas apenas, mas sim textos alongados, completos, com uma narrativa completa que, porém, como já afirmei, esmera-se em manter o mistério e em não oferecer respostas de mão beijada ao leitor, deixando-o tirar suas conclusões e compreender o objetivo do autor.

Estado Elétrico é, definitivamente, uma obra atípica, um elo perdido entre a literatura e os quadrinhos que ganha vida própria e que oferece muito aos leitores que se deixarem enfronhar nesse estranho e fascinante futuro do passado. A jornada de Michelle e de Skip merece ser seguida e, quando a última página for virada, a vontade que dá é começar tudo novamente, como se Simon Stålenhag tivesse nos viciado em sua arte.

Estado Elétrico (Passagen – Suécia, 2018)
Autoria e ilustrações: Simon Stålenhag
Editora original: Simon & Schuster
Data original de publicação: 25 de setembro de 2018
Editora no Brasil: Quadrinhos na Cia
Data de publicação no Brasil: 19 de maio de 2022
Tradução: Daniel Galera
Páginas: 144

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