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Crítica | Estação Central de Cairo

Violência terceiromundista .

por Frederico Franco
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O terceiro mundo dentro do cinema, como nota o teórico Robert Stam, segue quase religiosamente o conceito de contra-narração – ou contra-história. É narrar sobre aqueles que, pela óptica do norte global, ficam à margem da história. E também: é narrar para esse mesmo grupo marginal. A ideia de implementação de um terceiro cinema serve, sobretudo, como alicerce central do estabelecimento de um diálogo direto entre cinema e as massas. É saber configurar a linguagem cinematográfica de uma forma que, ao mesmo tempo em que encoraja o proletariado, também ataca o dito primeiro mundo; é sobre denunciar as situações específicas de seu cenário nacional sem nunca perder de vista o contexto maior, continental, internacional. O discurso, ainda segundo Stam, há de ser direto, sem desvios para outros gêneros ou linhas narrativas. O caso de Estação Central de Cairo, no entanto, é peculiar. Trata-se do primeiro grande trabalho do diretor Youssef Chahine, pedra angular do cinema egípcio da segunda metade do século XX. A obra gira em torno de uma estação de trem na capital Cairo e deu seus diversos personagens: Qinawi (interpretado pelo próprio Chahine), um vendedor de jornais apaixonado por Hanuma, uma jovem vendedora de bebidas prestes a se casar com Abu Siri, um trabalhador que comanda um importante movimento sindical da estação de Cairo. 

Estação Central de Cairo não deixa de compartilhar semelhanças com um cinema terceiromundista: acompanhamos personagens em situação marginal, há uma clara potência crítica à desigualdade social e percebe-se muitas vezes um tom de denúncia pela situação de calamidade da sociedade egípcia – em dado momento até autoexplicativo demais. Contudo, Chahine não posiciona sua âncora apenas na crítica ao sistema, vendo-se livre para transitar por diversas convenções de gênero do cinema. Estação Central de Cairo, de certo modo, parece mais alinhado ao neorrealismo italiano, permitindo-se construir blocos dramáticos dentro da própria bolha de crítica social. O discurso em Chahine é muito mais falado, discursado, debatido, do que mostrado: suas personagens reclamam, bradam, imploram, discutem tudo aquilo que a imagem poderia vir a dizer. Que não se entenda mal: os diálogos não são no geral um problema, mas é recorrente perceber certa redundância entre linguagem verbal e linguagem audiovisual

O primeiro terço do filme já coloca um importante retrato a ser valorizado: o desejo, ou, usando um conceito presente no terceiro cinema, a fome. Dentro do contexto imposto por Chahine durante o princípio da obra, percebe-se um filme baseado nos anseios de seus personagens. São famélicos no melhor sentido figurado da palavra: estão em busca de algo que, dadas as circunstâncias, parece ser impossível de ser

atingido. Qinawi, em seu pequeno barraco, possui diversos recortes de revistas masculinas que mostram mulheres em retratos sensuais; as modelos, em sua totalidade brancas, provavelmente europeias e estadunidenses. Seu desejo mais carnal e inatingível, é materializado pelas fotografias de mulheres estrangeiras e projetado em Hanuma. Qinawi, como é visto ao longo da película, não vê em Hanuma alguém: vê algo, um objeto inerte, uma posse para realizar sua satisfação enquanto homem. Tanto que, ao decorrer de Estação Central de Cairo, o protagonista conclui que se ele não a tem, ninguém mais poderá tê-la. Hanuma, por outro lado, parece em busca de uma independência que, dentro da sociedade egípcia, é tida como impossível; ao passo em que a mulher quer seguir com as vendas de bebida que lhe trazer uma leveza, Abu Siri não lhe dá tal abertura, inclusivo a agredindo se for necessário. 

Além do desejo, da fome, a violência é um dos outros protagonistas do filme de Youssef Chahine. Ela se apresenta das mais variadas formas, indo além do simples fato de filmar agressões físicas. A decupagem crua de Chahine não faz questão de amenizar as dores ou o sofrimento do proletariado egípcio e suas dificuldades cotidianas. Aliando isso a diálogos ásperos e discussões acaloradas, vemos surgir em nossa frente um grande sistema violento. É uma agressão que inicia na desigualdade social, marca do subdesenvolvimento causado pelo imperialismo, que passa por agressões entre os próprios agentes proletários e, por fim, culmina na violência de gênero. O terço final do filme apresenta um novo núcleo de violência: um serial killer é citado por alguns transeuntes da estação.

Esse falatório, ao chegar nos ouvidos de Qinawi, recém rejeitado por Hanuma, inspira-o a organizar o assassinato da mulher. O plano não funciona e, por engano, o vendedor acaba por esfaquear repetidas vezes uma das amigas de Hanuma. A raiva do protagonista não é muito explorada visualmente por Chahine: em um chiaroscuro confuso, a violência acaba se dissipando; a decupagem perde a potência da crueza ao optar pela sugestão. Essa opção não ocorre quando Qinawi, em um impulso derradeiro, ataca Hanuma no centro da estação: ali, Chahine retorna a um olhar distante, frio, entregando-nos uma atuação beirando a perfeição. A potência malévola do protagonista é vista não apenas em seus olhos, mas também em todos seus músculos enrijecidos. 

A força do discurso terceiromundista acaba se perdendo quando Estação Central de Cairo assume sua transição entre melodrama e suspense. O final do filme, com o aparente enlouquecimento de Qinawi, apresenta uma possível crítica ao sistema capitalista que leva o proletariado a direcionar essa raiva e violência aos seus próprios pares.

Estação Central de Cairo (Bab el hadid / Cairo Station) — Egito, 1958
Direção: Youssef Chahine
Roteiro: Abdel Hai Adib, Mohamed Abu Youssef
Elenco: Farid Shawqi, Hind Rustum, Youssef Chahine, Hassan el Baroudi, Abdulaziz Khalil, Naima Wasfy, Said Khalil, Abdel Ghani Nagdi, Loutfi El Hakim, Abdel Hamid Bodaoha, F. El Demerdache, Ahmed Abaza, Hana Abdel Fattah, Safia Sarwat
Duração: 75 min.

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