De certa maneira, considero O Fantasma da Liberdade o verdadeiro final da carreira de Luís Buñuel. É seu filme, digamos, apoteótico, em que ele alcança e agarra suas veias surrealistas com maior firmeza, literalmente olhando para trás em sua carreira e encapsulando seu trabalho fenomenal em 104 minutos de imaculada projeção.
Mas calma! Aqueles que acham que, por causa disso, eu vou criar problemas com Esse Obscuro Objeto do Desejo, efetivamente seu derradeiro filme, que ele dirigiu no alto de seus 77 anos (ele viria a falecer seis anos mais tarde, em 1983), estão completamente enganados. Quis, apenas, estabelecer que seu verdadeiro ponto final veio antes, em 1974, com sua fascinante viagem pelos confins de sua própria mente. Considero Esse Obscuro Objeto do Desejo seu epílogo, sua nota de pé de página, sua anotação no final de um excelente livro, sua coda.
Saem o alarde e as imagens provocantes de O Fantasma da Liberdade; entram uma narrativa mais sutil e atuações mais comedidas. Esse Obscuro Objeto do Desejo é também fascinante, não se enganem, mas do seu próprio jeito e, sobretudo, vagarosamente.
Usando mais uma vez o ator que viria marcar a fase final de sua carreira, o espanhol Fernando Rey, Buñuel nos narra uma história – inspirada por e, por incrível que pareça, bem próxima ao romance La Femme e le Pantin, de 1898, escrita por Pierre Louÿs – de paixão e amor “sem sexo” entre um francês mais velho (Rey, no papel de Mathieu) e uma bela jovem espanhola (Conchita, vivida por Carole Bouquet e Ángela Molina – mais sobre esse fato em um instante). A essa altura, Fernando Rey já havia se transformado em uma espécie de alter-ego de Buñuel diante das câmeras e vemos o ator muito confortável e brilhante em todas as cenas.
O que dá impulso ao filme é a bizarra cena inicial em que vemos Mathieu embarcando em um trem em Sevilha em direção a Paris e uma jovem toda machucada no rosto correndo atrás dele, somente para Mathieu jogar um balde d’água nela e calmamente voltar a sentar em sua cabine de primeira classe onde, aliás, em uma das daquelas “coincidências” buñuelescas, todos se conhecem. Sem saber que a jovem – Conchita – mesmo ensopada, havia conseguido entrar no trem e a pedido dos curiosos companheiros de cabine, especialmente um anão psicólogo (Piéral), Mathieu passa então a narrar os acontecimentos até o momento do balde.
Assim, em flashback, aprendemos como os dois se conheceram e como Conchita, ao longo do tempo, apesar de proclamar que o amava, se recusa terminantemente a transar sem antes estar casada. Se no começo logo lembramos do repugnante Don Lope de Tristana, Uma Paixão Mórbida, também vivido por Rey, quando vemos Mathieu avançando para cima de Conchita, não demora e passamos para o outro lado, o do próprio Mathieu e começamos a sentir por ele e a perceber que seu amor é aparentemente verdadeiro. Sua esposa morrera há sete anos e ele manteve-se celibatário desde então. Somente Conchita, muito mais nova é verdade, reacende o fogo de sua paixão e, quando ela corresponde em tudo menos com a conjunção carnal, Buñuel nos carrega para aquele estranho lugar em que achamos lá no fundo que essa relação não deveria acontecer, mas torcemos mesmo assim para que ela aconteça.
O sofrimento de Mathieu é palpável e as provocações de Conchita incrivelmente sensuais. O jogo de “gato e rato” entre os dois é enervante ao mesmo tempo que estimulante, mesmo considerando que Buñuel tenha feito uma obra que queima lentamente, sem nenhuma pressa de chegar a algum lugar e, por isso, ela é significativamente difícil de se assistir por alguém eventualmente despreparado para os arroubos criativos do cineasta.
E a crítica de Buñuel à alta sociedade está evidentemente presente a cada segundo da película, já que Mathieu é seu constante representante. E o que mais chama atenção é sua relação de cumplicidade com seu mordomo. Apesar do mordomo fazer tudo que seu patrão ordena e escudá-lo de qualquer coisa desagradável, Mathieu não o conhece de verdade e não tem o menor interesse em conhece-lo. É só uma pessoa de branco ao seu lado que faz tudo que ele quer porque Mathieu tem um chumaço de dinheiro no bolso. Nos segundos que Mathieu demonstra interesse, ele é tão artificial e forçado – e em uma situação de franco desespero do protagonista – que não há como ignorar o abismo social.
O mesmo vale para a crítica de Buñuel à Igreja Católica mais uma vez. Mas, em Esse Obscuro Objeto do Desejo, não vemos padres na jogatina, nem carolas preconceituosas. O comentário crítico é mais discreto e está no subtexto do “transar só depois de casar” que perpassa o filme. Além disso, há uma trama paralela, que faz comentário à relação de guerra existente entre Mathieu e Conchita (ou o “terrorismo sexual que ela pratica”), que lida sobre ataques terroristas por toda a Europa – ataques esses que abrem e fecham a película, diga-se de passagem – e que é visto por Mathieu com absoluta displicência e desinteresse. É que o grupo terrorista de esquerda nominado no roteiro é o “Exército Revolucionário do Bebê Jesus”. Preciso realmente salientar a crítica?
Mas voltando brevemente à Conchita e ao meu comentário de que ela é famosamente vivida por duas atrizes, se muitos podem supor que isso faz parte das costumeiras bizarrices de Buñuel, suponham novamente. A atriz (no singular) inicialmente contratada para o papel foi Maria Schneider, que, em 1972, havia contracenado com Marlon Brando no altamente controverso O Último Tango em Paris. O problema é que Buñuel não conseguiu trabalhar com a atriz logo quando as filmagens começaram, já que ela, compreensivelmente, não concordava – ou não se sentia bem – com as sequências de nudez no filme. A partir daí, as relações azedaram rapidamente e ela saiu da produção.
Chorando suas mágoas para o produtor Serge Silberman (um fã de Buñuel, na verdade) depois que a atriz foi demitida e temendo pelo encerramento das filmagens, Buñuel disse, de brincadeira, que o ideal seria contratar duas atrizes para ter segurança. Silberman topou na hora, para surpresa de Buñuel. O resultado? A contratação de Ángela Molina e Carole Bouquet para o mesmo papel, duas atrizes completamente diferentes fisicamente e que atuaram também como se estivessem fazendo papeis diferentes. Buñuel, então, com a ajuda inesperada de Silberman, deu o toque mágico ao seu filme, com o uso de uma ou outra atriz sem nenhum tipo de explicação ou justificativa, quase que obrigando Mathieu, a cada troca, a reiniciar sua corte à paixão de sua vida, adaptando-se às diversas mudanças de personalidade da personagem entre uma bela atriz e outra.
E esse toque surreal ao filme, que veio completamente sem querer, não é o único, e os demais estão lá bem ao estilo do diretor. São em bem menor quantidade e bem mais discretos que em obras anteriores do autor, mas eles se fazem presentes: é o rato sendo pego pela ratoeira durante a conversa entre Mathieu e Encarnación, a mãe de Conchita (María Asquerino), e removido pelo mordomo; o já falado balde de água em Conchita no começo; o anão psicólogo; a menina na cabine do trem ouvindo a toda essa violentamente erótica história e outros. Não esperem explicações definitivas, mas sintam-se livres para tecer suas próprias conclusões sobre “o que o diretor pretendia”.
Esse Obscuro Objeto do Desejo é um relativamente quieto, lento, mas absolutamente envolvente epílogo na carreira cinematográfica de um dos mais brilhantes expoentes dessa arte. É puro Buñuel, mas com comedimento, em doses homeopáticas capazes de curar qualquer tipo de preconceito cinematográfico.
- Crítica originalmente publicada em 10 de fevereiro de 2014. Revisada para republicação em 26/09/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.
Esse Obscuro Objeto do Desejo (Cet Obscur Objet du Désir, França – 1977)
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Jean-Claude Carrière (baseado em romance de Pierre Louÿs)
Elenco: Fernando Rey, Carole Bouquet, Ángela Molina, Julien Bertheau, André Weber, Milena Vukotic, María Asquerino, Ellen Bahl, Piéral
Duração: 102 min.