*Contém imagem com sexo explícito.
Brian K. Vaughan é um dos poucos autores de quadrinhos que eu acompanho religiosamente desde que eu o descobri nas páginas de X-Men no final dos anos 90, com seus projetos autorais, começando por Y: O Último Homem e Ex Machina realmente sedimentando, para mim, seu altíssimo nível de qualidade na Nona Arte. Quando ele criou o Panel Syndicate, em que o leitor escolhe o preço que quer pagar pela obra, inclusive zero, lá estava eu no primeiro dia e, quando, no começo de 2022, ele anunciou que iniciaria a Exploding Giraffe (uma homenagem e referência ao icônico painel das girafas explodindo em Leões de Bagdá) na plataforma Substacks, que, na época, eu nem conhecia, tratei de fazer a assinatura e acompanhar suas publicações semanais em que ele e Niko Henrichon, seu parceiro no projeto, incitava conversas e publicada algumas poucas páginas de Espectadores (Spectators, no original), publicação por enquanto exclusiva de lá.
Entre 14 de janeiro de 2022 e 23 de dezembro de 2024, ao longo de 138 partes com número variado de páginas a cada vez, Vaughan e Henrichon contaram a história de Val, uma mulher que, logo no começo, é assassinada em um atentado de um maluco com metralhadora no cinema, algo infelizmente tão comum especialmente nos Estados Unidos. Na verdade, trata-se de uma história do pós-vida de Val, pois, assim que ela morre, seu espírito – com a idade que ela tinha na metade de sua vida – sai de seu corpo e passa a flutuar por uma Nova York de um futuro razoavelmente distante, depois que ocorre um salto temporal. E o que a versão incorpórea de Val faz? Ela observa as pessoas vivas, especialmente durante o ato sexual, algo que ela faz sozinha até encontrar Sam, um homem com o mesmo hábito voyeur que é um cowboy falecido muito tempo antes dela e que já viajou até Plutão. Eles logo se conectam e, juntos, passam a procurar especificamente uma sessão de sexo a três – o famoso ménage à trois – para observar, como uma espécie de “objetivo de pós-vida”.
Trata-se, como minha sinopse alongada deixa entrever e bem no estilo de Vaughan, uma história carregada de sexo, por diversas vezes bem explícito tanto visual, quando narrativamente, fazendo seus leitores também de voyeurs ou, como o singelo título da graphic novel afirmar, espectadores. Mas há mais do que apenas uma busca de um ménage. Todo o pano de fundo desse futuro da Terra é pessimista e nihilista ao extremo, com uma conexão direta com o que vemos acontecer com a Val de 40 e poucos anos no começo da história: a ascensão de uma tendência de um grupo difuso de pessoas que se identifica como #leaderboard em cometer atos de violência gratuita contra outros seres humanos, algo que, no futuro em que a Val em seu corpo de algo como 20 anos vive como espírito, ganhou proporções gigantescas a ponto de alterar a geopolítica mundial. Ou seja, enquanto observamos Val e Sam observando sexo de todas as variedades, observamos também o mundo se esfacelando diante de nossos olhos e não pelas razões usuais de apocalipses que vemos por aí na ficção. É uma história inegavelmente estranha, subversiva, desafiadora e melancólica que fala muito sobre nós e o estado do mundo em que vivemos.
Mas Espectadores não seria o que é sem a arte de tirar o fôlego de Niko Henrichon, responsável pelos desenhos da citada Leões de Bagdá. Como a observação é essencial à narrativa, Henrichon faz como a direção de arte de Janela Indiscreta fez, só que em escala muito maior: ele nos oferece muitos detalhes para admirar, para folhear página a página com toda a calma possível, para irmos bem além dos balões de fala, com os espíritos ganhando cor e o mundo “real” permanecendo em preto e branco. E falo aqui tanto de detalhes como as expressões nos rostos de Val e Sam e de alguns coadjuvantes importantes como Lita, uma mulher que flutua nua com apenas uma meia calça, colar, pulseiras e brincos e que é o primeiro espírito que Val conhece, e Theodore Roosevelt (sim, o presidente dos EUA – não confundir com o outro Roosevelt, o Franklin, que foi também presidente dos EUA, só que mais tarde), que, junto com Lita, investigam… ou melhor… observam justamente os membros do #leaderboard, assim como diversos outros que povoam a narrativa, além de espetaculares páginas inteiras e páginas duplas com visões de Nova York, recortes da cidade, lutas e, claro, muito sexo. Essa é uma daquelas HQs que se beneficia demais do formato digital, que permite que o leitor amplie cada detalhe da arte da Henrichon, ainda que eu tenha certeza de que uma publicação criteriosa em papel (que ocorrerá em 2025 pela Image Comics, conforme Vaughan anunciou) será outra festa para os olhos.
Espectadores é uma HQ adulta que olha a vida inegavelmente com graus elevados de pessimismo e melancolia, mas que encontra no ato sexual e em sua mais completa desmistificação uma maneira de liberação, de navegação ao encontro de algo que pode ser – e é – muito precioso. Val e Sam, que não podem fazer sexo por serem intangíveis, sabem bem disso e exatamente por isso observam esses momentos com desejo e nostalgia mesmo com o mundo ao seu redor ruindo a cada dia que passa. E não é isso que fazemos também? Observamos, impotentes, a direção que o mundo caminha? Somos os espectadores de nossas próprias vidas, mas cabe a nós sermos mais do que isso e aproveitá-las ao máximo.
P.s.: O Exploding Giraffe será desativado antes do final de 2024, mas, com o pagamento de pouco mais de cinco dólares (um valor que, mesmo convertido em reais, fica muito abaixo do preço da publicação em papel quando for lançada), qualquer um ainda pode ter acesso aos arquivos PDF e CBZ completos da HQ para download. E não, isso aqui não é publicidade paga, apenas um serviço de utilidade pública!
Espectadores (Spectators – EUA, 2022/24)
Publicada em: 138 partes
Roteiro: Brian K. Vaughan
Arte: Niko Henrichon
Editora original: Substack (Exploding Giraffe)
Data original de publicação: de 14 de janeiro de 2022 a 23 de dezembro de 2024
Páginas: 300