A questão de sentir-se deslocado em terras provincianas já era algo presente em A Árvore dos Frutos Selvagens, penúltimo filme do turco Nuri Bilge Ceylan. Em seu último trabalho, Ervas Secas, é o que sente também o professor Samet, que, após quatro ansiosos anos aguardando, finalmente está prestes a se transferir de uma pequena cidade para Istambul. A sua vida, até então, é meio desconcertante; ou talvez, ele próprio seja desconcertante. O protagonista externaliza constantemente algum desequilíbrio, muitas vezes gratuito. Aí já temos o indício de que, talvez, o problema esteja muito mais no indivíduo do que no meio. E é exatamente com essa abordagem que o roteiro se desvia completamente do caminho que seria esperado dele. Samet e seu colega Kenan são acusados de ‘’comportamento inadequado’’ com duas alunas pré-adolescentes; a partir disso, o espectador poderia esperar um desenrolar nos moldes de A Caça, porém, como já dito, o cerne está muito mais no sujeito do que em seu ambiente.
A revelação do suposto abuso só acontece com quase uma hora de filme, até lá a narrativa prepara o terreno para isso mostrando a relação próxima de Samet com Savem, uma das alunas membras do caso. Eles demonstram intimidade e apreço juntos, e a interpretação da jovem se destaca indo de sua desenvoltura a um choro comovente na marcante cena de seu pedido no depósito da escola. Após o atrito da denúncia já estabelecido, pouco sobra de efeitos deste caso, e o longa se concentra em um segundo lado de toda a história, que é a relação afetiva de Samet com sua colega. Chama a atenção essa falta de desenvolvimento do caso do abuso, até porque o novo interesse amoroso do acusado é também sua colega de trabalho (Nuray). Mas nada disso faz falta. O roteiro toma os rumos corretos, e tanto ele quanto a direção conseguem prender o espectador mesmo com essas lacunas, o completo ritmo lento e a longuíssima duração da narrativa.
Ervas Secas é uma obra de tempos mortos contada sem a menor pressa. É a forma necessária para que o espectador possa imergir no mundo de Samet — tanto o interno quanto o externo. Assim, cria-se uma fluidez que faz com que o público se acomode muito bem sem querer mais ação ou cortes. O que não significa que seja um trabalho extremamente contemplativo, deslumbrado por momentos silenciosos. Pelo contrário, os personagens falam demais; há longas conversas cheias de digressões, dissertações e tensões. Os personagens evocam inúmeras ideias sem deixarem de exprimir e provocar emoções. Parece sempre que há uma bomba prestes a explodir. Três exemplos disso são o de um jovem militante brigando com um idoso, Samet e Nuray discutindo num jantar e a atormentada cena de Samet e Sevim acertando as contas no mesmo depósito já citado.
Esta última, na verdade, é realizada com bem poucas palavras; e é do intercâmbio entre o dizer e o silêncio que surge sua tensão. Lembra a passagem de A Caça em que Mads Mikkelsen reencontra a menina da trama na igreja. O paralelo entre as duas partes se distingue pela aflição da primeira e o acolhimento da segunda, portanto, nada tem a ver com o conteúdo. A proximidade está no fechamento de arco e na síntese que se conclui com a reação dos respectivos protagonistas: o personagem de Mikkelsen é o bom cidadão que busca harmonizar sua relação com o seu meio; já Samet ainda está perdido e mantendo um contato árido com tudo ao seu redor. O filme é esse estudo de personagem bastante minucioso em que pesa cada olhar e tom de voz de Samet. Isso faz com que a interpretação de Deniz Celiloğlu seja nada menos que magistral; há uma perfeita expressão de seu temperamento que é muito bem dosada, nunca sendo necessário recorrer ao apelo dramático convencional e unilateral. É uma interpretação de ‘’desvios’’, de gestos certos nas horas certas — algo sútil, mesmo que às vezes eletrizante.
Kenan, o colega de trabalho de Samet envolvido na mesma polêmica que ele, é a pessoa com quem ele compartilha também a mesma casa e o desejo pela mesma mulher. O protagonista, já se vendo como alguém de fora daquela cidade, se oferece para apresentá-la ao colega; mas não tem jeito, ainda existe algo de Samet preso àquele mundo, levando-o a um interesse pela moça. Isso acarreta Samet a passar a ver Kenan como seu concorrente, o que se estende numa abrangente oposição a ele, passando a repudiá-lo — fator que será aproveitado no caso das denúncias, o que deixa o roteiro mirabolante por um momento. Um instante que demonstra o forte peso dramático do filme (principalmente de Celiloğlu) pela sutileza é na cena em que o triângulo amoroso está num restaurante e, ao Nurey depositar muita atenção em Kenan, Celiloğlu apenas vira o rosto para o lado e demonstra o mais profundo desprezo por meio de seu penetrante e azedo olhar. Coisa de mestre.
Outra parte marcante, desta vez bem mais longa e, em função de sua verborragia, menos sutil, é o já citado jantar do protagonista com Nurey na casa desta. Agora, visões de mundo não são só expostas, mas também gritadas, confrontadas e trituradas. Uma certa apatia que Samet possui pela realidade em geral é colocada em xeque e ele sai de sua zona de conforto. Os dois entram num choque de cosmovisões políticas: ela, uma engajada, inconformada e idealista; ele, individualista e cético. Um liberal contemplativo, pode-se dizer. Possui uma filosofia refinada em sua negação de visões totalizantes, o que cria um debate interessante e, talvez, o melhor momento do filme — tanto pela simples exposição de ideias quanto pela inquietação provocada. Outros destaques são os que vêm logo depois, ainda na mesma sequência, quando ocorre uma reviravolta movida por uma serena conversa no sofá, beijos e sexo.
Os planos externos de Ervas Secas são dominados pela neve; o mais chamativo deles é o primeiro, em que Samet aparece minúsculo num enorme enquadramento de uma área isolada. É o indicativo de pequenez dele num ambiente inexpressivo e pouco dinâmico. Nos planos internos, a fotografia apresenta uma elegante iluminação que costuma não percorrer todo o quadro, sendo mais centralizada, ignorando suas margens laterais e superiores. Existe, como é de se esperar em filmes lentos do tipo, muitos planos abertos e estáticos; a ideia de um espaço além dos personagens caminha lado a lado com a inércia deste mesmo espaço. No final, vemos planos externos ensolarados que sugerem um olhar revisionista das vivências naquele lugar. Ida a pontos turísticos, paisagens idílicas, digressões existencialistas e monólogos narrados levam à ambivalência da relação de Samet por lá. Mas o que essas coisas realmente dizem? Tudo no filme é pouco claro (não no sentido visual), e é aí que está sua profundidade e charme: desorientar o público e o personagem.
Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne, Turquia, França, Alemanha, Suécia, Catar, 2023)
Direção: Nuri Bilge Ceylan
Roteiro: Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan, Akın Aksu
Elenco: Deniz Celiloğlu, Merve Dizdar, Musab Ekici, Ece Bağci, Erdem Şenocak, Münir Can Cindoruk, Onur Berk Arslanoğlu, Yıldırım Gücük, Cengiz Bozkurt, S. Emrah Özdemir, Elif Ürse, Elit Andaç Çam, Nalan Kuruçim, Ferhat Akgün, Eylem Canpolat
Duração: 197 minutos.