Se há dúvida quanto à origem ou ao destino final é porque há uma responsabilidade genética e espiritual em relação a vida, uma espécie de coerção muito abrangente, que o diretor David Lynch, apenas com os rastros de alguma ideia, ou de uma mente coagida, promove um universo cinematográfico como efeito do anseio por liberdade do julgamento. Se a progressão narrativa de uma vida é de descoberta e de anseio por ela, também pode ser a prisão eterna de querer se livrar do desconhecido, sem deixar rastros da origem para o destino, apenas escolhas que preservem sua identidade. E são nessas possibilidades sugeridas por Eraserhead é que a prole se torna o suprassumo do julgamento da realidade de qualquer ser humano.
A partir dessa ideia, a construção de uma obra extremamente ambígua nos simbolismos é o trunfo para comprimir, sem reduzir, o estudo vital de uma história de origem do protagonista Henry Spencer na pretensão inclusa de alcançar o seu destino final sem conclusão explicativa. O diretor e roteirista David Lynch busca constantemente as expressões do ator Jack Nance interpretando Henry, a iluminação receosa da fotografia preto e branco e todo o potencial transcendente de emoções e ideias construtivas do seu mundo necrosado e sórdido. Essa pretensão insiste no mistério apelativo ao espectador para que a história de vida contada seja tão estranhamente envolvida com esse universo – nas descobertas onde Henry mora, ou com quem se relaciona amorosamente – como intrigante do porque ele é a fonte de vida desde da primeira cena do filme, como início do cosmo temporal. Porque assim como o berço de uma ideia sobre um obra cinematográfica, seja qual for, parte do primeiro frame, Lynch parece não apenas usá-lo como apresentação para o espectador do seu universo criado em preto e branco e cheio de efeitos especiais práticos, que tornam o cenário surrealista com tão pouco material, como determinar um nascedouro, como uma máquina que é ligada por alguém, ou como adentrar na mente dos primórdios da humanidade a partir da criação de algo conceitualmente destinado a nascer.
Dessa forma, se com uma junção da imagem do busto Henry pairando flutuante translúcido sobre um cenário cósmico centralizado por uma bola rugosa, ou com um ser biológico semelhante a um cordão umbilical encapado por luz, num jogo de efeitos especiais, sai da boca de Henry, há a abertura descritivamente imagética do filme com símbolos relacionados a ideia de proveniência no começo da obra, a imersão na história de Henry também se torna o entrar em uma porta larga. Em vista disso, o começo do filme remete ao começo de algo, como se o conceito nunca de origem nunca se desgastasse ou se torne explicado. Não há necessidade de tradução e deve-se tentar traduzir, pois são símbolos que flutuam na narrativa como princípio, mas que vão se moralizando dentro de uma lógica própria de mistério.
Diante disso, quando a concepção dentro da história se torna concreta, com o nascimento do filho de Henry, prematuro, ele ao mesmo tempo é indescritível. E quanto mais a história soa normalizada, mais linear e concreta, com Henry e sua namorada Nancy tendo o conflito clássico de um nascimento indesejado, mais a ambiguidade do destino vai se revelando a partir das estranhezas dos gestos. Na sordidez até soa como uma ambientação onírica, em que David Lynch parece sempre trabalhar com exercícios da arte moderna surrealista, mas é sempre um abrir de possibilidades coercitivas de como a prole indesejada, o significado permanente em efeito moral e julgador que pressiona Henry ao longo do filme.
Daí surge a aparente perda de identidade, o anseio por liberdade e consequentemente o destino reativo e moral que afunila Henry em meio a abrangência de um nascimento transformador e de uma ignição para um universo. O protagonista de Lynch é o centro corrediço na narrativa, por isso sua mente no campo psicológico e sua cabeça no campo material agregam a ambiguidade contínua do universo criado pelo diretor. Tudo se mistura simbolicamente e fisicamente, em que a verossimilhança na experiência com o filme persevera como um início inabalável de reestruturação da ideia inicial, ou processo embrionário de uma morte, como o fim estendido de um começo a ser julgado pela materialização da prole.
Logo, Henry se torna seu filho em algum nível de ideia, assim como o pai e a mãe de Mary são afetadas ou afetam a estrutura de sua casa pelas histórias de cada um. Eis a coerção da responsabilidade que em algum aspecto parece nascer desde sempre, em que a família espacialmente é a casa, assim como um casal em amor divide a cama e os pais são funções incubidas pelo nascimento automaticamente. Henry, moralmente falando, peca não apenas porque o espectador pode julgá-lo como infiel à esposa ou irresponsável com o filho, e sim porque a própria prole julga-o. Em meio a isso, seu desejo por se libertar do filho revela uma estranheza incomparável, uma alegria matadora, uma prisão teatral que parece concreta, e por isso parece trair, dissimular o universo simbólico criado por Lynch.
Por fim, em Eraserhead o destino não parece o final, e sim os rastros de uma vida concebida e por irresponsabilidade abandonada por não suportar uma pressão originada pelo próprio legado auto originário. Acaba que a abrangência simbólica centrada em um protagonista e sua relação com o meio é a insuficiência efetiva de experiência insatisfatória com as escolhas da vida, ou qualquer alcance de liberdade. Se Lynch exercita tanto as expressões dos seus atores para se harmonizar com o universo estranho do filme, o branqueamento luminoso visual total, que por muitos é o auge transcendental, da vida ou da morte, é nada mais nada menos que o símbolo ainda ambíguo sobre a origem do filme, mas agora reflexo de uma moral sobre o julgamento inevitável, seja espiritual ou genético, que a vida concebe e apaga a linha escrita no papel.
Eraserhead (Eraserhead) – EUA, 1977
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch
Elenco: Jack Nance, Charlotte Stewart, Allen Joseph, Jeanne Bates, Judith Roberts, Jack Fisk, Darwin Joston, Hal Landon Jr.
Duração: 89 min.