Ron Howard já provou que é um mestre em cinebiografias, com suas melhores obras trabalhando vidas reais em ambiente ficcional como em Apollo 13 – Do Desastre ao Triunfo, Uma Mente Brilhante e Rush – No Limite da Emoção. Somente quando ele tira os pés do chão e mergulha completamente na ficção é que ele acaba se auto sabotando e entregando filmes que parecem não saber exatamente o que querem ser, como são os casos da franquia baseada nas obras de Dan Brown sobre Robert Langdon e o recente Han Solo: Uma História Star Wars, ainda que neste último a culpa não recaia exclusivamente em seu colo.
Era uma Vez um Sonho, portanto, por ser baseado em recente autobiografia de J.D. Vance sobre sua trajetória de Middleton, Ohio até a faculdade de Direito em Yale, uma das mais prestigiosas instituições dos EUA, era promessa de algo perfeitamente dentro da zona de conforto do cineasta. Some-se a isso às escalações de Glenn Close como a matriarca Bonnie Vance e de Amy Adams como Bev, sua filha e mãe de J.D. (Gabriel Basso quando mais velho e Owen Asztalos quando mais novo) e de Lindsay (Haley Bennett), dois papeis típicos de filmes lançados em final de ano para chamar a atenção dos votantes da Academia e pronto, a tempestade perfeita estava pronta.
No entanto, ela não se forma de verdade. No máximo consegue ser uma garoazinha fraquinha lá no horizonte. E o problema de Era uma Vez um Sonho está principalmente no roteiro escrito por Vanessa Taylor (Divergente, A Forma da Água) que extirpa qualquer elemento de construção de personagens ou de desenvolvimento de narrativa para focar em momentos escolhidos a dedo do passado de J.D. que ele, adulto e sendo chamado de volta para casa por sua irmã em razão de uma overdose de sua mãe, narra ao longo de sua viagem de um dia. O resultado disso é que Bev e principalmente Bonnie transformam-se em caricaturas, algo amplificado pelo trabalho de maquiagem e cabelo em Glenn Close que a faz parecer alguém que acabou de levar um choque elétrico, com uma atitude que parece saída daquele desenho do Zé Buscapé. Ao que tudo indica, o filme, ao tentar derrubar os estereótipos, faz exatamente o contrário, reforçando-os ao tratar seus personagens quase como curiosidades de circo.
No pouco espaço que Adams e Close têm, elas cumprem bem sua função dramática, mas o problema é justamente o espaço confinado que lhe é entregue, já que muito do tempo de câmera seja entregue para as duas muito insossas versões de J.D. que personifica o tão almejado Sonho Americano. E sim, sei perfeitamente que a história é baseada em fatos, mas fatos nem sempre funcionam dramaticamente e o roteiro descontextualiza completamente a pobreza que, portanto, passa a existir no vácuo, como um fenômeno em si mesmo que é vencido com uma calculadora, um momento de realização e muita perseverança off camera, quase que literalmente como um passe de mágica. Todo o construto sócio-político ao redor da situação kafkiana da família Vance, composta pelos típicos caipiras que o muito melhor título em inglês referencia (em tradução direta, é Elegia Caipira) é, no máximo, um detalhe de fundo referenciado aqui e ali.
E nem se diga que a simplificação do roteiro veio em razão de uma abordagem lírica como aconteceu em Rosa e Momo, pois Era uma Vez um Sonho de lírico nada tem. Ao contrário, Howard preza pelo realismo e é justamente ao fazer isso que ele acaba deixando às escâncaras a falta de substância que Taylor oferece com seus diálogos básicos e narração em off didática, mas ainda bem discreta, de J.D. É como se a forma escolhida para o longa expusesse suas fraquezas, já que o vai-e-vem entre passado e presente torna a trama episódica, com as elipses temporais sendo preenchidas com situações repetitivas que, se pararmos para pensar, não carrega o longa de maneira fluida do ponto A ao ponto B, mas sim faz ziguezagues e movimentos circulares que quase não o tiram do lugar.
Não tenho muitas dúvidas, porém, que a mensagem simplista ecoará positivamente para muita gente, pois, apesar de todas as tristezas por que J.D. passa, ela é sem dúvida alguma positiva, algo que já fica evidente pelo simples fato de nós o vermos em Yale, com sua namorada Usha (Freida Pinto em outro papel insosso para combinar com o de Basso), logo no início da projeção, contrastando de cara com seu passado nas montanhas dos Apalaches que ele reputa como os melhores momentos de sua vida. Mas é justamente a lógica do “ele venceu todas as barreiras e alcançou seu sonho” sem uma construção bem feita que a sustente que mostra um pouco da perversidade do roteiro. É como aqueles livros de autoajuda que dizem algo como “basta pensar positivo, que tudo se resolve” em que a única autoajuda que ele oferece de verdade é a seus autores.
Era uma Vez um Sonho torna conto de fadas em realidade ao glosar tudo o que pode causar conflitos e construir o caráter de seus personagens que não sejam os clichês básicos de dramalhões desse naipe que todos nós já nos acostumamos a ver em um sem-número de outras obras muito melhores. Ron Howard dessa vez errou em uma cinebiografia, mas o cineasta não tinha como fazer muito com a adaptação de Vanessa Taylor. Aliás, nem ele, nem Glenn Close e Amy Adams…
Era uma Vez um Sonho (Hillbilly Elegy – EUA, 24 de novembro de 2020)
Direção: Ron Howard
Roteiro: Vanessa Taylor (baseado em livro de J.D. Vance)
Elenco: Amy Adams, Glenn Close, Gabriel Basso, Haley Bennett, Freida Pinto, Bo Hopkins, Owen Asztalos, Jesse C. Boyd, Stephen Kunken, Keong Sim, Morgan Gao, Ethan Suess, Jono Mitchell, Bill Kelly, David Dwyer
Duração: 117 min.