Zerocalcare, pseudônimo do fumettista (cartunista) italiano Michele Rech, provavelmente não terá apelo no Brasil ou, para ser sincero, em qualquer país fora da Itália, onde ele goza de alguma reputação. Mas Entrelinhas Pontilhadas, uma inteligente versão nacional para o título original que pode ser traduzido mais diretamente como “Rasgue ao Longo das Bordas“, animação em seis episódios baseada pelo menos em parte em sua vida, não exige que se conheça seu autor – também diretor, roteirista, narrador e dublador de todas as vozes, com exceção de parte do último capítulo) -, mas sim que se aprecie uma excelente aula de narrativa audiovisual.
Com duração total de um longa-metragem padrão, a animação, que é feita integralmente no estilo dos quadrinhos independentes que ele publicou em seu país natal, lida com Zerocalcare hoje, aos 37 anos, partindo para uma viagem com seus dois melhores amigos, Sarah e Secco, para lugar incerto, por razões não sabidas e, no processo, relembrando sua vida não só adulta, como também em outros dois momentos-chave, quando criança e quando adolescente em flashbacks entrecortados e trabalhados como partes integrais do todo. Aliás, é interessante notar, logo de cara, que mesmo essa estrutura macro – uma viagem – não fica clara logo de início dada a principal característica da série: sua vertiginosa velocidade.
Não me lembro de outra obra em que tanta informação é jogada tão rapidamente na tela de maneira tão eficiente. Grande parte dos episódios é narrada intensamente pelo protagonista, com as imagens servindo de apoio, de ilustrações para o que ele explica, mas sem didatismo, sem pegar na mão do espectador, muitas vezes emulando fluxo de consciência. Tentar entender o italiano ou mesmo as legendas em português em apenas uma sentada é perder muito da série – não da história, pois esta é simples e prosaica, o que torna muito fácil conectar-se com Zerocalcare de imediato – e assisti-la em qualquer outra língua que não a original é crime inafiançável dada a conexão estreita da verbalização de sentimentos na língua original com os jogos visuais que o criador usa em sua obra., pelo que a série talvez exija ser revista, até porque a compressão do destino do protagonista e seus amigos empresta outro significado ao que é visto no começo.
O roteiro é repleto de questões cotidianas, prosaicas como ir a um banheiro de boate ou restaurante ou como um apartamento de um solteirão é dividido (aliás, é impressionante ver tanta realidade sendo jogada em nossa cara!), o que empresta uma leveza enganosa à série que intercala assuntos mais difíceis e complexos como amor platônico e relacionamentos abusivos, tudo sem que a narração onipresente ou os econômicos diálogos perca seu ritmo ou altere a direção da narrativa macro. Tudo o que vemos e ouvimos faz parte de um todo complexo, sem saídas fáceis e repleto de alegrias e decepções chamado vida, a mesma vida que nos bombardeia inclementemente todos os dias com velocidade muito superior a que Zerocalcare tenta imprimir à sua história.
O uso de linearidade não linear, ou seja, uma história principal, mas de menos destaque até o episódio final que avança em apenas uma direção intercalada por diversas outras, sem ordem fixa, que a alimentam, é a grande jogada da série para fazer tudo funcionar, tudo realmente encaixar-se em seus espaços, permitindo que tenhamos um panorama irônico, engraçado, sério e triste sobre uma vida que poderia ser a minha, a sua ou a de alguém que conhecemos. Zerocalcare revela-se como um excelente maestro de tempo acelerado que consegue comprimir suas mensagens em episódios que, tão logo começam, acabam, dando a distinta impressão de que toda a jornada se deu literalmente em um piscar de olhos, entre uma inspiração e uma expiração criando no espectador a mesma angústia que o protagonista sente cada vez mais apertando seu peito.
Deixei para falar no proverbial elefante na sala apenas no final de propósito. Na verdade, o tatu na sala, para ser mais preciso, esse aí que vocês veem na imagem que escolhi para ilustrar a crítica. Esse tatuzão é a personificação da consciência de Zerocalcare, surgindo por vezes ao longo da série para comentar o que ocorre, dando-lhe conselhos que vão na contramão do que esperamos de um personagem que em tese funciona como o Grilo Falante. Releguei ao tatu ao tratamento na rabeira da crítica unicamente porque, apesar de entender seu propósito, ele me parece muito mais um artifício do autor para chamar a atenção dos espectadores do que realmente um personagem com função narrativa desenvolvida e clara para o desenvolvimento da ação. O protagonista já é reflexivo mais do que o suficiente, tendo Sarah como uma amiga lúcida na forma como enxerga as coisas. O tatu é… inútil para além de ser algo que pode ser usado nas sinopses chamativas da série. Zerocalcare – o personagem – não é definido como sendo o cara que fala com um tatu, mas sim como um adulto em uma jornada de autoconhecimento que tenta dar sentido ao que viveu até agora. Entrelinhas Pontilhadas seria melhor ainda sem o sempre enfezado e intrometido bicharoco.
Mas isso não importa muito. O tatu gigante não aparece tantas vezes assim ao ponto de realmente atrapalhar a narrativa mais do que cinética dos parcos – mas muito bem utilizados – seis episódios da série. O que realmente faz diferença está intacto no trabalho de Zerocalcare, ou seja, sua maneira peculiar e difícil, mas impressionantemente perfeita de narrar uma vida comum em uma história que tem o potencial de nos levar das risadas às lágrimas muito facilmente, mas nunca em razão de sentimentos menos do que próximos ao nosso peito.
Entrelinhas Pontilhadas (Strappare Lungo i Bordi – Itália, 17 de novembro de 2021)
Criação: Zerocalcare
Direção: Zerocalcare
Roteiro: Zerocalcare
Elenco (vozes originais): Zerocalcare, Valerio Mastandrea, Paolo Vivio, Chiara Gioncardi, Veronica Puccio, Ambrogio Colombo, Michele Foschini, Ezio Conenna, Alessandra Sani
Duração: 115 min. (seis episódios)