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Crítica | Entre Mulheres

Perdoar a quem nos tem ofendido.

por Fernando JG
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É extremamente sintomática a primeira combinação de cena que abre o longa metragem de Sarah Polley. A cineasta segue à risca as aulas de montagem do mestre Sergei Eisenstein: dois produtos formam um terceiro; duas imagens montam um outro significado; e aqui duas cenas sintetizam vítima, agressor e ação. Salome Friesen (Claire Elizabeth) acorda sangrando entre as coxas como se estivesse sido dopada durante à noite anterior; abraça sua mãe e então lhe é dito que pode ter sido ação do Diabo. Temos um corte veloz em que, num plano aberto, a câmera focaliza um batalhão de homens sentados de cabeça baixa, sem rostos aparentes, num anonimato completo. 

A mensagem é clara: as mulheres estão sendo violentadas pelos homens dessa colônia religiosa – e não sendo especificamente um homem o abusador, por isso que não importam os seus rostos, todos eles são potencialmente agressores. Alienação, religião e violência. É desta maneira, com uma cena que dura poucos minutos, que Sarah Polley introduz o tema e o problema da sua película. Montado num estilo parábola, Entre Mulheres cruza a vida de diversas mulheres que vivem numa colônia e sofrem todas do mesmo problema desconhecido: o abuso inaudito. Pasmadas com o que vem ocorrendo ano após ano, fazem um plebiscito para decidir se ficam e lutam ou se vão embora. O roteiro baseia-se no romance de nome homônimo, Women Talking, de Miriam Toews.

A diretora estabelece o seu enredo num estilo distópico-premonitório, em que a desgraçada e o revés estão sempre presentes como uma ameaça viva e inescapável. Todas parecem destinadas a um mesmo fim – e esse destino liga-se, invariavelmente, à questão do ser mulher como ontologia num mundo masculino. Em seu debate teórico, o filme mesmo aponta para uma ideia de sororidade feminina: “women talking”, isto é, atravessa um grande diálogo entre essas mulheres para decidirem o que farão. Penso que a cineasta perde uma grande oportunidade de tê-lo rodado em um plano-sequência circular enquanto essas mulheres conversam entre si, uma vez que até o cenário clama por esse artifício, que é totalmente ignorado pela realizadora.

De texto, tudo é muito repetitivo e circular, o que afeta imediatamente a complexidade da película, que fica num espectro cansativo da rivalidade entre homens e mulheres, além de uma eterna discussão rasa sobre sair ou ficar, o que não ajuda no desenvolvimento do enredo. Entre Mulheres tenta ser uma parábola sobre a liberdade, perdão e amor, mas tem pouco simbolismo e função alegórica inserida nele. Acaba, no fim, por ser uma leitura de roteiro a respeito dos problemas de gênero, ou seja, do gênero feminino, e sobretudo do sexo biológico. 

Me decepciono, sobretudo, com a fragilidade narrativa, que tem apenas na sua discussão sobre fé o principal elemento. Aí, nesse ponto, o filme estabelece excelentes reflexões acerca do perdão àqueles que nos tem ofendido. Devemos sempre perdoar, mesmo que a ofensa seja mortal? E quanto ao Céu? Obteremos acesso caso a reação contra o mal seja inevitável? A nossa submissão à uma lei imutável deve aguentar tudo ou temos alguma liberdade de pensar e agir? A fita atravessa camadas do dogmatismo cristão e chega em pontos precisos a respeito da alienação religiosa. As cores opacas expressam bem a angústia das mulheres da colônia e todos os dias são necessariamente cinzas porque, para elas, não há instante de felicidade nesse lugar. 

O filme também deixa de explorar o lado masculino e parece não ter interesse, ou ter medo, em expandir a discussão para algo mais profundo, por isso estabelece as mulheres como vítimas permanentes que são e os homens como agressores inauditos, a quem não sabemos nada. Mas sabemos que há um problema aí: esses mesmos homens também são e serão filhos dessas mesmas mulheres – e potenciais abusadores: e como a película resolve esse problema? Não resolve. Entre Mulheres jamais aponta para o problema que é o meio em que estão inseridos. A obra esquece o problema da influência do meio no comportamento desses sujeitos e então abdica de ser uma fita realmente comprometida com o seu tema – algo que me soa apenas como um feminismo comercial, isto é, feito com lugares-comuns que vendem a ideia, mas que não discutem o problema de maneira sincera. 

O desenvolvimento da trama deixa a desejar e soa cada vez mais como uma narrativa de gênero preguiçosa e acomodada num problema extremamente batido. A obra não inova, apenas repõe e se vende com uma máscara de luta anti patriarcado, quando no fundo não se interessa em desmontá-lo, porque é mais trabalhoso e portanto menos confortável do que supor uma pretensa revolução no curso da obra, que todos sabemos ser o puro suco do reformismo. 

Ainda, vemos a presença de produções como Retrato de Uma Jovem em Chamas na construção do perfil estético feminino e de A Vila na ambientação atmosférica da película. Conta-se com boas atuações de Rooney Mara, Claire Foy e Frances McDormand – esta última, aparece menos, e me parece que está lá apenas pela mensagem e estilo do filme do que por outra coisa. O drama imperfeito de Sarah Polley persegue questões antigas e modernas no que diz respeito à luta de gênero, e evidencia que a violência feminina e a religião cristã caminham de mãos dadas secularmente. A resolução da trama é ainda mais simplória e menos comovente, entre ficar e lutar ou ir embora, elas partem. Não me surpreende o desfecho, uma vez que tudo caminha para isso: uma solução mediana e previsível para um filme também mediano e previsível – com isso a cineasta evita maiores problemas na construção do enredo e o encerra pela porta de saída, literalmente, assim como faz com as suas personagens. 

Entre Mulheres (Women Talking, EUA, 2022)
Direção: Sarah Polley
Roteiro: Sarah Polley (baseado no romance de nome homônimo de Miriam Toews)
Elenco: Rooney Mara, Claire Foy, Frances McDormand, Jessie Buckley, Judith Ivey, Sheila McCarthy, Michelle McLeod, Kate Hallett, Liv McNeil, August Winter, Ben Whishaw, Kira Guloien, Shayla Brown, Emily Mitchell, Nathaniel McParland, Eli Ham
Duração: 104 min. 

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