A coisa que imediatamente chama a nossa atenção em Knives Out é o seu icônico elenco. Escrito e dirigido por Rian Johnson, o longa é uma comédia de mistério majoritariamente centrada em um único cenário (a mansão da família Thrombey) e lida com um crime muito cedo anunciado: a morte do patriarca Harlan, interpretado por Christopher Plummer. Com um enredo não-linear, o filme nos traz o cenário das famosas histórias de mistério popularizadas pela literatura (no presente caso, principalmente de Agatha Christie, de quem Johnson é um declarado fã) e tem como foco a investigação da morte de Harlan Thrombey, pois o seu suposto suicídio traz uma série de suspeitas que coloca o caso em outra seara. Talvez ele tenha sido assassinado. E como é de praxe em tramas do gênero, todos são suspeitos.
Mistérios centrados em casas, mansões ou hotéis terão sempre a sua parte claustrofóbica no desenvolvimento, e diante desse ingrediente é que observaremos os personagens agirem em segredo e serem colocados contra a parede, forçados a falar, a fazer ou a fugir de alguma coisa que possa lhes incriminar — uma oportunidade de o roteiro falar mais sobre eles e confundir constantemente a percepção do espectador em relação ao próprio mistério central. Aqui, o texto abraça com gosto esse aspecto clássico da literatura policial e sem cerimônia brinca com toda a dinâmica investigativa da Rainha do Crime, que não por acaso iniciou a carreira no gênero com uma aventura em uma mansão: O Misterioso Caso de Styles.
Muito ciente do que tinha em mãos, das referências que pretendia fazer (a exemplo de Daniel Craig, em excelente atuação, citando Watson, mas agindo como uma espécie de Hercule Poirot não muito brilhante, com direito a nome francês e até estranho sotaque!) e do tipo de investigação que queria elencar, o diretor começou provendo o público com o máximo de informações sobre a noite anterior à morte do patriarca, ou seja, a sua festa de 85 anos. O roteiro não se ressente da rápida revelação do crime e nem de brincar um pouco com as suspeitas do público, um serviço feito com enorme elegância, utilizando-se de depoimentos como se fossem entrevistas clássicas para um documentário. Dessa abordagem é que surge o primeiro suspiro de novidade na obra, trazendo a tiracolo a subversão de impressões, frustração ou incremento de expectativas para com as pessoas que vemos na tela, especialmente quando não falam de si mesmas, mas dos outros membros da família, isso quando todos já são suspeitos.
Nos romances e adaptações do gênero, a dinâmica de grandes grupos são sempre um fator divertidíssimo de se acompanhar em investigações, e isso está reforçado aqui até nas piscadelas que o diretor faz para obras como Assassinato no Expresso Oriente (1974), Assassinato por Morte (1976), Os Investigadores (1980), Os Sete Suspeitos (1985) e Assassinato em Gosford Park (2001) — todos esses citados como influências na escrita e direção de Entre Facas e Segredos. Como estamos falando de uma família (e agregados) de diferentes classes sociais, o suicídio ou crime investigado acabará por trazer à tona sintomas das questões de classe, com direito às famosas demonstrações de poder através do dinheiro, uma situação que o texto mostrará de diversas formas e sob os interesses de diferentes pessoas. Obras desse naipe sempre utilizarão do momento de crise para acordar sentimentos, comportamentos e pensamentos de pessoas que conviveram muito tempo juntas, mas que não necessariamente se conhecem.
Assim, a leitura social e também de caráter acaba tomando um ponto importante do enredo à medida que a escrupulosa direção mostra cenas acontecendo sob diferentes pontos de vista, preenchendo espaços, explicando onde cada um estava em cada horário e, o mais importante, não esticando nenhum ato além do que deveria. A história não é necessariamente curta, mas a montagem a equilibra muitíssimo, misturando o humor cheio de cinismo com comentários que se ligam às críticas pessoais, sociais e a assuntos políticos que rondam esse Universo, como o engajamento ideológico na internet, opiniões sobre a política de imigração nos Estados Unidos e ideias sobre meritocracia, colocando esses personagens de maneira muito coesa no mundo em que vivemos e paradoxalmente os distanciando pela quase irrealidade do mundo familiar abastado em que vivem. Até a forma como o diretor mostra os cômodos, as estátuas no interior da casa e os cachorros servem como pistas que são espalhadas pelo filme para então serem recolhidas no momento da grande revelação.
O bárbaro elenco completa esse exercício dando-nos o máximo de variações possíveis para que a investigação se torne intricada e divertida, sem amarras que a gente não consiga desatar no final. Mesmo que alguns pontos do processo de revelação no ato final e muita coisa do núcleo solo de Marta Cabrera (Ana de Armas) não seja a última palavra em termos de organicidade… e que uma certa característica emocional dela seja fisicamente manifestada (aspecto do filme que não consegui me decidir se gosto ou não, pendendo mais para a segunda opção), o roteiro nunca se trai. É por isso que nos apegamos e consideramos tudo em relação aos membros mais importantes da família, como o vagabundo e cativante de Ransom Drysdale (Chris Evans), a deslocada e fingida Joni Thrombey (Toni Collette), a magnética Linda Drysdale (Jamie Lee Curtis, que permanece encantadora), o ressentido e desprezado Walt Thrombey (Michael Shannon) e o pragmático e desprezível Richard Drysdale (Don Johnson), cada um deles mostrando um aspecto nada saudável das relações familiares e esperando coisas diferentes do mesmo homem, sem olhar para quem eles realmente são e o que de fato merecem.
Mesclando os clássicos enredos de “Quem Matou?” com os clássicos ingredientes da filmografia de Rian Johnson (planos muito bonitos e alguns bem diferentões, o que é sempre ótimo de se ver; composição fotográfica quase teatral e direção de arte impecáveis, especialmente em interiores) e um mistério que está o tempo inteiro trazendo revelações bombásticas, Entre Facas e Segredos é um suspense muito divertido, mas que para alguns espectadores pode diminuir bastante a euforia no terceiro ato. Eu não tive assim tanto problema no desfecho, mas a mudança de tom e ritmo do filme são grandes ali, o que para mim continua fazendo parte desse Universo, só que em um momento bem diferente para todos os personagens. Eu gostaria que o jovem Mark Gatiss Jaeden Martell não fosse escanteado aqui, pois seu personagem é o que mais destoa em termos de aproveitamento no filme e não por falta de importância (até a bisa K Callan tem melhor aproveitamento que o garoto), algo que é um pecado incômodo num filme desse porte, mas também não é nada que impeça o aproveitamento real da história. Prepare-se para uma jornada detetivesca interessante. Certamente um dos melhores e mais divertidos filmes de 2019.
Entre Facas e Segredos (Knives Out) — EUA, 2019
Direção: Rian Johnson
Roteiro: Rian Johnson
Elenco: Daniel Craig, Chris Evans, Ana de Armas, Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Don Johnson, Toni Collette, LaKeith Stanfield, Christopher Plummer, Katherine Langford, Jaeden Martell, Riki Lindhome, Edi Patterson, Frank Oz, K Callan
Duração: 130 min.