Enfeitiçados começou sua produção ainda em 2017 e passou por diversas modificações, produtoras e distribuidoras – além da COVID – até aportar na Skydance Animation e Netflix, e isso pode ter afetado o resultado final dessa animação musical de Vicky Jenson, famosa por ter sido a codiretora de nada menos do que o sensacional Shrek, mas que também comandou, ao lado de outros dois diretores, o bem menos inspirado O Espanta Tubarões. No entanto, tenho para mim que o longa carrega, em sua premissa, uma dificuldade inerente, que é a vontade de subverter o fina feliz tradicional de contos de fadas ao mesmo tempo em que mantém seu “segredo” escondido até os 20 minutos finais de projeção, o que acaba reduzindo o impacto de sua mensagem central a não mais do que uma inconveniência de fácil resolução.
A história já começa um ano depois que o Rei Solon (Javier Bardem) e a Rainha Ellsmere (Nicole Kidman), governantes do belo reino fantástico de Lúmbria, foram misteriosamente transformados em monstros que ignoram completamente quem são e, principalmente, não ligam para sua filha, a Princesa Ellian (Rachel Zegler) que, por seu turno, com a ajuda dos fieis ministros Bolinar (John Lithgow) e Nazara Prone (Jenifer Lewis), mantém tudo em segredo. Esquecendo-se a lógica frágil de se esconder por tanto tempo o destino dos monarcas de um reino, algo que a suspensão da descrença dá conta, o ponto nodal está justamente no “misteriosamente” que mencionei, já que o roteiro escrito e reescrito diversas vezes, tem extrema dificuldade em lidar com isso, o que faz com que os dois terços iniciais sejam usados para apresentar a situação e lidar com as soluções para o problema sem abordar o problema, de forma que tudo possa ser “revelado” mais adiante, durante uma fuga por uma floresta e, depois, montanha, atrás de um lago que curará a monstruosidade do Rei e da Rainha, conforme prometido pelos oráculos Sunny (Tituss Burgess) e Luno (Nathan Lane).
Sem dar spoilers, algo que é extremamente difícil justamente pela estrutura peculiar do longa, Enfeitiçados é sobre família, mas uma família menos do que a idealizada em incontáveis filmes, especialmente animações, que é abordada a partir do ponto de vista da jovem, mas forte filha do casal que precisa enfrentar seu “abandono” e ao mesmo tempo cuidar dos pais que nada mais são do que enormes cachorros bagunceiros com aparência de dragões fofos e gorduchos. Como o real drama da narrativa é guardado a sete chaves para ser equivocadamente trabalhado em poucos minutos, com uma resolução leve e ligeira que simplifica sobremaneira a questão, a produção investe nos visuais deslumbrantes e belíssimos do reino fantasioso, com uma direção de arte luxuosa, nas canções e melodias que foram muito bem escritas e compostas por Alan Menken e Glenn Slater, além de cantadas muito bem, especialmente por Zegler que continua firme e forte em sua carreira de trajetória meteórica e um elenco cujo trabalho de voz original é uniformemente de altíssima qualidade, com destaque para a já citada Zegler, além de Lithgow, Lewis e a dupla formada por Burgess e Lane.
Curiosamente, porém, toda a beleza, a luz, a alegria e a composição geral desse universo é o exato oposto da mensagem do filme, algo que é amplificado pelas aparências supostamente monstruosas do rei e a rainha, além da forma como agem no castelo e durante a jornada. Tudo é muito leve, muito bonitinho demais e, quando finalmente as quase que literais trevas cercam os personagens, elas não só não são bem construídas, como ganham desenvolvimento raso, banal mesmo, que retira do longa sua importância e o converte em uma lição didática ao extremo sobre as peças que a vida nos prega e como isso afeta a dinâmica entre pais e filhos. E eu sei que uma animação é normalmente voltada para o público infantil, mas se tem um público que não precisa ser tratado com textos expositivos é justamente esse, e falo por experiência própria com minhas filhas. Para exemplificar meu ponto, basta lembrarmos de outra animação de 2024 que lida com situações menos do que ideais pela qual passa uma adolescente, Divertida Mente 2, e imaginarmos como seria o longa de Kelsey Mann se Ansiedade fosse introduzida em seu terço final como o grande mal que assola Riley, ganhando, então, não mais do que meia hora para ser trabalhada na narrativa. Pois é mais ou menos isso que acontece em Enfeitiçados, infelizmente.
Ao tentar mais uma vez subverter uma fábula, Vicky Jenson tropeça em um roteiro hesitante que não consegue lidar com o assunto que promete abordar e, mesmo com a produção acertando na direção de arte, nas vozes e no departamento musical, ela nunca realmente consegue o tipo de coesão narrativa necessária para passar sua mensagem sem recorrer a artifícios que a banalizam e, pior ainda, subestimam o espectador. Havia magia em Enfeitiçados, mas é uma decepção perceber que grande parte dela é sacrificada em prol da manutenção de um segredo que sequer precisava ser um segredo para a história funcionar.
Enfeitiçados (Spellbound – EUA, 22 de novembro de 2024)
Direção: Vicky Jenson
Roteiro: Lauren Hynek, Elizabeth Martin, Julia Miranda
Elenco: Rachel Zegler, Nicole Kidman, Javier Bardem, John Lithgow, Jenifer Lewis, Tituss Burgess, Nathan Lane, Jordan Fisher
Duração: 109 min.