Escrito e dirigido por Teinosuke Kinugasa, o longa-metragem Encruzilhada (1928), estreou dois anos depois da obra-prima Uma Página de Loucura, e confirma o notável talento e disposição inovadora do artista para contar histórias. Com olhar aguçado para os avanços técnicos do cinema de sua época e uma grande vontade de realizar experimentos, Kinugasa oferece aqui um produto visualmente impressionante, falando sobre rejeição, chantagem, amor fraterno, tentativa de estupro e prostituição, tudo em uma narrativa emocionante e trágica.
O jovem Rikiya (Junosuke Bandô) está obcecado pela cortesã O-ume (Yukiko Ogawa), mas esta faz um grande jogo de sedução e o rejeita, diverte-se com ele, abre espaço de flerte para outros pretendentes e deixa que Rikiya entre em brigas por amor a ela. Em uma dessas brigas, o adversário acaba jogando algo nos olhos de Rikiya, que fica temporariamente cego. Esse é o ponto onde a trama se torna mais densa, especialmente porque exalta o papel da irmã do jovem obcecado, a doce Okiku (Akiko Chihaya), e as provações, humilhações e perigos pelos quais ela irá passar para dar suporte ao irmão. Essa linha do roteiro é uma das mais bonitas e mais bem trabalhadas da fita, mostrando a relação fraterna e como ela é perseguida por uma atmosfera fatídica.
Para narrar essa história, o cineasta manteve o emprego de técnicas visualmente inovadoras, como fizera em Uma Página de Loucura, embora este filme de 1928 não seja assim tão inventivo quanto o anterior, e não mergulhe tanto no campo do surrealismo. Entretanto, continua nos chamando a atenção o uso de ângulos não convencionais, a grande mobilidade de planos – inclusive para evocar uma sensação de desconforto, superioridade ou inferioridade de um personagem – bem como a ampla gama de aspectos emocionais que o diretor expõe na tela, a exemplo das memórias e sonhos perturbadores de Rikiya sobre a cortesã O-ume ou a soberba sequência em que o jovem morre aos pés de seu amor e seu rival.
A passagem inventiva entre os vários tópicos narrativos quase nos faz esquecer (porque estamos focados na “novidade visual” e no que ela pode representar) a complexidade das relações humanas que o enredo aborda tão profundamente. O diretor não perde tempo com amenidades. Os letreiros são poucos e curtos, expondo apenas as marcações necessárias de falas ou cenas. A montagem torna o enredo fluido e cativante quase todo o tempo, a ponto de podermos perdoar os momentos trucados no início do filme, quando Rikiya chega em casa, ensanguentado, pela primeira vez.
A colaboração de Kinugasa com o diretor de fotografia Kôhei Sugiyama (o mesmo de Uma Página de Loucura e Portal do Inferno) resulta em composições impressionantes, transmitindo a turbulência interna dos personagens, suas dores e sua maldade. A atenção aos detalhes no enquadramento aumenta o impacto emocional do filme, imergindo o público em cada novo ambiente por meio de objetos ou ações em andamento. A maneira como a chuva ganha um papel importante do meio para o final da obra (fechando o caminho dos personagens e tornando suas vidas simbolicamente claustrofóbicas), a passagem do tormento do irmão para a irmã, que acaba cometendo um crime (aliás, a direção dá um show de exploração do espaço, na cena de estupro de Okiku) e o afunilamento para a morte agonizante e vergonhosa de Rikiya, são escolhas do diretor que funcionam de maneira irretocável, ocupando lugares bem altos entre os meus momentos da película.
Encruzilhada é uma pérola do cinema japonês, evidenciando a habilidade de Kinugasa em transpor as limitações técnicas de sua época e criar algo inesquecível. O caráter visionário desta sua obra permanece mesmo 95 anos depois do lançamento oficial (escrevo esta crítica em junho de 2023), e essa permanência talvez ajude a explicar o legado do artista, merecidamente reconhecido como um pioneiro. É lamentável que suas obras sejam pouco conhecidas. Este é o tipo de produção que a gente diz com toda certeza que “quem não viu, está perdendo muita coisa”.
Encruzilhada (十字路 / Jûjiro / Crossways / Shadows of the Yoshiwara / Slums of Tokyo) – Japão, 1928
Direção: Teinosuke Kinugasa
Roteiro: Teinosuke Kinugasa
Elenco: Akiko Chihaya, Junosuke Bandô, Yukiko Ogawa, Ippei Sôma, Yoshie Nakagawa, Misao Seki, Teruko Sanjô, Keinosuke Sawada
Duração: 81 min.