Quando lançado, em 2006, Encontro com Milton Santos… foi a sensação do Festival de Brasília, e ao longo de sua estreia pelo mundo, arrebatou diversos prêmios. O diretor Silvio Tendler, famoso por ter assinado documentários críticos sobre a sociedade brasileira (Os anos JK – Uma Trajetória Política, Jango e Utopia e Barbárie por exemplo), realiza aqui um projeto que tinha desde 1995, quando conheceu o geógrafo Milton Santos e cogitou filmá-lo. Apenas em 2001, e cinco meses antes da morte do estudioso baiano, o diretor realizou com ele uma longa entrevista e, com base em suas ideias, realizou o filme em questão.
Se foi aplaudido de pé nos Festivais e obteve elogios de muitos pensadores, críticos e cinéfilos, o filme — como qualquer outro que fale de política — gerou indignação em alguns grupos, que o acusaram de “embelezar a miséria“, “vender opinião engessada” e de trazer uma “crítica terceiromundista viciada“. Já compararam o Tendler de Encontro com Milton Santos… com Michael Moore em uma versão Tupiniquim — e isso no pior sentido de sua conotação. Um outro grupo de espectadores tinha a esperança de que o filme teorizasse a respeito do mundo globalizado contemporâneo (lembrando que a obra é de 2006, fruto de entrevistas gravadas em 2001) ou trouxesse questionamentos de dezenas de pensadores sobre os efeitos do consumo, a fome no mundo, os novos rumos da civilização.
Não se pode deixar de assentir relutantemente para essas observações. De fato, o documentário é inerte em relação aos questionamentos incômodos, porque não acenam para uma intervenção, um princípio de resposta, por assim dizer. O filme se auto-explica e para por aí. Mas é necessário colocar pensar a respeito da proposta da fita. A intenção aqui não é de fato construir um pensamento lançado a debates de “melhorias pontuais de problemas do mundo“, porque a proposta é trazer à tona as ideias do pensador entrevistado. Mesmo as participações realizadas durante o filme são materiais de arquivo, fotos, vídeos amadores, noticiários de TV e trechos de outros filmes que ajudam a explicar o pensamento sobre a sociedade que o geógrafo tanto se dispôs a entender e interpretar. Nesse sentido, o filme de Silvio Tendler entrega com bastante solidez o que promete: é uma obra na medida certa para o tipo de material que escolheu mostrar.
Partindo da importância da imagem para o homem do século XX e XXI, o documentário segue uma linha cadencial entre dados, depoimentos e exposição no estilo jornalístico, com narração de alguns atores. De um alcance bem amplo por ser constituído comercialmente, o documentário toca em pontos delicados de nosso tempo usando de linguagem acessível, que embora dotada de erudição, não se furta em explicar conceitos essenciais para que o púbico entenda melhor outros desdobramentos, como no caso da definição do que foi o Consenso de Washington, logo nos primeiros minutos do filme. Muita coisa, no entanto, fica nas mãos do espectador, para pesquisá-las posteriormente.
Se Tendler “fala o que o povo quer ouvir” (para pegar uma frase clichê aplicada ao documentário), ele o faz da melhor maneira possível. No entanto, duvido que essa estranha definição seja legítima quando se trata de um filme que aborda manifestações populares na Bolívia e no Peru, crise econômica na Argentina, manifestações ambientalistas em Davos, busca por emprego no Brasil e fatos incômodos do mundo em pleno “Globalitarismo”. É isso o que o povo quer ouvir?
Longe de sensacionalismos, manipulação de opinião e perpetuações ideológicas rasas Silvio Tendler procura transmitir as ideias de Milton Santos o mais fielmente possível. A esperança entra como o elemento humanista e essencial do pensador e da nossa sociedade na reta final. As regressões de pesamento político, ocorridas nas últimas décadas, o sucesso empreendedor da inerte geração yuppie e o triunfo da colonização econômico-comercial no mundo são expostos sobre uma visão crítica porém não niilista, nem apontando para algo como “o fim da História“. O público é convidado a ver um mundo que a mídia de massa não mostra (embora com a internet isso conheceu uma série de bons — e maus também — atalhos). Do lado de cá, o mundo globalizado passa a ter as suas primeiras cores desbotadas. Uma semente de inquietação é plantada assim que o filme termina.
Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá (Brasil, 2006)
Direção: Silvio Tendler
Roteiro: Silvio Tendler
Elenco: Milton Santos (entrevistado) e Beth Goulart, Fernanda Montenegro, Milton Gonçalves, Osmar Prado, Matheus Nachtergaele (narradores).
Duração: 89min.