Senegal é um país da costa atlântica africana que, durante séculos, lutou contra a violência e a exploração europeia, iniciada pelos portugueses no século XV e chegando ao seu fim apenas com a separação do país da Federação do Mali (criação territorial francesa que unia o antigo Sudão Francês – atual Mali – e Senegal), em 1960. Durante esse período, além de Portugal e França, o Senegal também teve como colonizadores os Países Baixos e a Inglaterra. A exploração da mão de obra escrava, o alistamento forçado de nativos aos exércitos colonizadores, a pilhagem de recursos naturais, o massacre de rebeldes contra o sistema de dominação e o etnocídio são apenas alguns dos males causados pelas nações europeias ao país africano. Era de se esperar, portanto, que essas feridas históricas fossem exibidas quando artistas africanos começassem a criar suas obras e criticar, denunciar e gritar contra todo esse processo de exploração.
O cinema senegalês tem na pessoa do escritor e cineasta Ousmane Sebène a sua pedra angular. O realizador – que lutou na Segunda Guerra Mundial e estudou cinema com o professor, escritor, produtor e cineasta soviético Mark Donskoi – expunha de maneira crítica e nada eufemizada a situação do continente africano minimizadas nas questões políticas e sociais da pós-independência em seu país. Desde O Carroceiro (Borom Sarret, 1962), curta-metragem que é considerado o pontapé inicial para o cinema da África Subsaariana realizado por um diretor nativo, as produções senegalesas e africanas receberam a influência do realismo político de Sembène; realismo que se tornou um modelo continental, com resquícios de forma e conteúdo percebidos até hoje.
Em Emitaï (1971), Sembène trabalha com a questão do alistamento senegalês forçado pela França, transformando os nativos em inimigos de seu próprio povo, fazendo-os reprimir, prender e atirar em qualquer rebelde. O filme aborda o período de transição do governo de Pétain para De Gaulle e as políticas internas de imposições fiscais e colonização em Senegal. No filme, o Exército solicita aos cidadãos o pagamento de imposto per capita pela produção de arroz, ordem que é desobedecida pelas mulheres, que resolveram resistir, escondendo toda a colheita. A narrativa em tom de crônica nos apresenta o cotidiano da vila de Casamance, com o seu Conselho de Anciãos, o plantio e colheita do arroz, a resistência das mulheres e o final que critica veementemente a repressão colonial aos africanos. Emitai está repleto de motivos cinematográficos tipicamente africanos, o que dá uma maior força antropológica e realista à obra.
Mesmo trabalhando com questões políticas e sociais, Sembène não se esqueceu da religião ou da ligação de seu povo com práticas nativas e os ancestrais. Em boa parte do cinema da África negra, a questão da ancestralidade tem seu lugar garantido. No documentário burquinense Memória Entre Duas Margens, essa questão se mostra vital para a história e para a identidade do povo de Burkina Faso, por exemplo, e assim também é para boa parte do continente. A fantasia desse mundo ancestral se une ao mundo político em Emitaï, numa mistura tão incrível (porém menos idílica) que me lembrou fortemente o moçambicano João Ribeiro em O Último Voo do Flamingo, realizado décadas depois. A interferência dos deuses define toda uma postura política aqui. Até na forma, com coloração uniforme dos takes, o diretor conduziu a “sequência dos deuses” em um ponto à parte do “mundo real” ali vivido. Não há uma separação bem definida entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos; entre deuses e homens. Todos estão intimamente ligados, formam um corpo orgânico, embora, de certa forma, disperso.
Emitaï é um filme sociopolítico e antropológico que contém o gérmen da resistência africana e questiona, acima de tudo, o poder como algo instituído e sustentado através do discurso persuasivo do medo e da exploração. A predominância do silêncio em algumas cenas ajudam-nos a absorver melhor essa posição do diretor frente à realidade. O que mais nos chama a atenção é a mudança na direção de arte do início do filme para o final, começando com uma compleição tribal e culminando com um Estado de guerra ou burocrático estabelecido.
Emitaï é um grande filme, e se não emplaca como uma obra-prima de Sembène, é por pouco, muito pouco, talvez apenas pelo mínimo subjetivo ligado à construção narrativa mais lenta, em sua primeira parte, e por cenas menos objetivas em seu desenvolvimento. O filme, no entanto, é poderoso ao defender a emancipação dos povos africanos frente à dominação e ao massacre causados pelos europeus, fazendo-nos conhecer a voz daqueles que se levantaram contra a opressão, destacando o papel das mulheres do continente no processo e mostrando que a colonialidade destrói não apenas a vida de seres humanos, mas também esgota por completo os recursos da terra, apoia as brigas étnicas locais para enfraquecer organizações populares e mantêm seus mercados aquecidos com a mão de obra quase escrava e o mercado consumidor forçado dos Estados dominados. O luxo e a glória da Europa erguidos com sangue, suor, lágrimas e toda a cultura e História civilizacional dos continentes que tiveram o infortúnio de cair em seus tentáculos exploratórios. E a dinâmica dessa tragédia histórica é a aquela que Sembène analisa, num microcosmo nacional, em Emitaï.
Emitaï (Senegal, 1971)
Direção: Ousmane Sembène
Roteiro: Ousmane Sembène
Elenco: Robert Fontaine, Mcihel Remaudeau, Pierre Blanchard, Andoujo Diahou, Ibou Camara
Duração: 103 min.