Os ensaios do dr. Daniels quase sempre provocam as mesmas sensações e incômodos. Dependendo de quem os lê, o incômodo é insuportável já pelo título do livro. Para tantos outros, seu moralismo filosófico é a obviedade ululante da que falava o nosso maior filósofo. E entre o monólogo seco resultante do primeiro caso e o frutífero diálogo do segundo, um mar de pessoas o desconhece (ainda) ou o olha de soslaio, com aquela desconfiança ideológica sufocante e estéril.
Em Defesa do Preconceito não é, por sua vez, aquele livro que quebrará uma barreira construída pacientemente na atmosfera cultural enviesada que o Brasil se encontra há décadas. Enviesada para esquerda, para citar mais uma obviedade ululante, sem vociferações desnecessárias. Essa dicotomia esquerda-direita é tão ultrapassada e só prejudica o verdadeiro debate, alguém certamente alegará com ares professorais e evoluídos – e enviesados, adivinhe, sorrateiramente. Tomemos um segundo aqui antes de retornarmos ao objeto do texto.
Uma discussão mais chinfrim, pautada com os marqueteiros tons vermelhos de sempre, não raramente se inicia com a queda do muro e o fato incontestável de que o comunismo, ali, fora extinto. Tudo, é claro, em tom de escárnio – dos que ridicularizam histericamente a URSAL do menino Daciolo sem abrir a boca para uma conversa serena sobre o Foro de São Paulo ou a Unasul. Conversas moles à parte, que em semanas um Marighella terrorista seja a ponta de lança do cinema brasileiro no Festival de Berlim, que o PT – o maior partido dos últimos 30 anos do Brasil – tenha declarado apoio a Maduro semana passada e que tantos outros que o defenderam até outro dia se digam defensores da democracia, que se entoe a Internacional Socialista em plena sessão da Comissão da Verdade na OAB do Rio de Janeiro, que se comemore os 100 anos de Revolução Russa em escolas públicas e que o Brasil, um país massivamente católico e conservador, não tenha um mísero partido conservador após a re-democratização, nada, absolutamente nada disso conta para provar uma predominância político-cultural da esquerda em terras tupiniquins. Nem Freud explica – mas Flávio Gordon me parece que exaustivamente sim.
Concedo que só se possa falar de esquerdaS e direitaS. Pouco isso importará caso a tão famigerada autocrítica seja feita apenas internamente – a moral da esquerda clássica é, de fato, diferente da do resto mundo, já avisava Trotsky. Talvez haja um campo de mínima concordância entre progressistas e conservadores contemporâneos menos ansiosos e arrogantes: a cultura não é campo para se pautar ideologicamente P@rR# alguma. À direita ou à esquerda.
O mal empiricamente comprovável de uma obra cultural decadente – leia-se: prioritariamente social, política e ideológica, que traga tais fatores como causas sólidas e não efeitos naturais de seu conteúdo – tem uma chuva de exemplos em Nossa Cultura…ou o que restou dela, do próprio Dr. Daniels. Seu ensaio comparativo entre Karl Marx e Ivan Turguenev é um primor. Mas o fato principal é que Em Defesa do Preconceito mira uma abordagem preliminar, quase que denunciando, ao estilo de Roger Scruton, algumas falácias e cacoetes mentais que fagocitam quem quer que respire muito tempo o ar dos melhoradores da humanidade.
“Em nossos dias, testemunhamos um forte preconceito contra todo e qualquer preconceito, e é exatamente assim que deveria ser, não é mesmo?”, começa Dalrymple, apenas para ressaltar o verdadeiro e palpável cagaço – perdoem meu francês – que alguém sente ao se ver como figura preconceituosa. Preconceituosos, como leprosos, são automaticamente olhados com desdém por sua “inerente” intolerância e inépcia.
Essa oligofrenia aos olhos dos marqueteiros públicos é limpada com operações simples, ressalta o autor. Ler a história como um passado horroroso a ser esquecido, incentivar a busca por opiniões próprias, autênticas e convictas, e encorajar a visão de mundo que interpreta toda relação humana como luta de poder são exemplo límpidos de como o preconceito pode ser varrido da face da terra. Um viva para a nossa pedagogia.
Um preconceito, contudo, sempre é substituído por outro nesta busca pueril por pureza. O mérito do ensaísta está no vai e vem destrutivo e propositivo a que se propõe. Só que o processo não é tão fácil quanto se parece: Dalrymple constata, por pura observação, 1-a inevitabilidade do preconceito, 2-a existência de preconceitos certos e errados e 3-a diferença qualitativa entre os dois. A primeira etapa é praticamente intransponível dependendo da porcentagem de influência que as religiões sociais ou liberais exercem em nossas vidas. Ganha-se uma certa ojeriza da expressão “natureza humana” na mesma proporção em que se perde contato com o chão. Quem já conversou com ideólogos de gênero sabe da psicopatia ali latente.
E não adianta avisar que Platão ou Santo Agostinho continuam mais transgressores que todos os transgressores bem pensantes dos últimos séculos – um aviso pra lá de idiota de tão evidente. Quem se embebeda a vida inteira de revolta aos convencionalismos acaba por se cegar completamente ao convencionalismo da própria revolta, ao preconceito de própria mente aberta. Em uma frase, à patetice do seu “odeie seu ódio”.
Mas Dalrymple é democrático o suficiente para também bater na utópica racionalidade científica estrita que tantas teorias de gabinete guardam consigo. Em suma, constata o mau uso do ceticismo que ora cai em um relativismo cínico e preguiçoso, ora em um dogmatismo sem vergonha às avessas. Ambos reducionistas e totalitários, exatamente por igualarem a liberdade de opinião à igualdade de opinião, nas palavras do doutor. Posto que a validade só tem sentido científico ou estritamente subjetivo – a busca pela verdade só se dá nas ciências naturais e as opiniões, por serem opiniões próprias, são todas válidas – desaparece a tensão e o esforço pela verdade.
Assim, o utilitarismo otimista, tal como o marxismo, ganha ares atmosféricos. Resultado prático: perda dos escrúpulos geralmente sustentados invisivelmente por hábitos e costumes. Pesquisas e atitude, antagonistas em tantos cenários, dão as mãos para inverter o ônus da prova: o cinismo de uma jovem adolescente ao colocar os pés em um banco no metrô londrino é intangível, cabendo ao idoso que quer sentar convencê-la da hostilidade da ação. Mas como, se nada comprova cientificamente o mal dos pés nos bancos e se a opinião do velho vale tanto quanto a da menina? A perspicácia de Dalrymple no caso é acachapante: tal individualismo radical gera, normalmente, um paradoxal ciclo vicioso: aquilo que começa como busca por um individualismo ampliado ou mesmo total termina com o aumento do poder do governo sobre os indivíduos. Ou seja, ganha-se mais leis como árbitros morais da sociedade exatamente ao se justificar tudo com “Não há lei contra isso”. E a burocracia agradece.
É neste sentido que Dalrymple faz questão de lembrar que o preconceitos são como amizades: devem ser mantidos em bom estado.
Em tempos onde qualquer julgamento de valor se torna sinônimo de intolerância ou censura, nos dirigimos, lentamente, para apenas um juízo: a regra de não fazer julgamentos. Quase que por cacoete mental, nos iludimos com tal posição pseudo isenta e logo relaxamos nossa cabecinha no confortável travesseiro da reputação de ousadia moral e individual. Contra o preconceito, é preciso ou questionar tudo ou…resistir de mãos dadas.
Haja saco.
In Praise of Prejudice: The Necessity of Preconceived Ideas — Reino Unido, 2007
Autor: Theodore Dalrymple
Tradução: Maurício G. Righi
Editora no Brasil: É Realizações
Páginas: 144