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Crítica | Em Busca de Frankenstein: O Monstro de Mary Shelley e Seus Mitos, de Radu Florescu

Um livro com diversas informações complementares não encontradas em outros estudos lidos por aqui, mas prejudicado pelo trabalho editorial precário.

por Leonardo Campos
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Se houvesse máquina do tempo ou ressuscitação, para trazê-la de volta, a escritora Mary Shelley ficaria imensamente surpresa com a projeção do seu romance Frankenstein em diversas frentes. Filmes, quadrinhos, séries televisivas, músicas, estudos acadêmicos e outras tantas publicações, como esse Em Busca de Frankenstein: O Monstro de Mary Shelley e Seus Mitos, de Radu Florescu, publicado aqui no Brasil pela Editora Mercuryo, em 1998, com tradução de Luiz Carlos Lisboa e capa dominada por raios e um azul que nos remete ao tom das atmosferas de tempestades, trabalho de design elaborado por Sidney Guerra e Patrícia Paiva. As suas 238 páginas abrigam os 11 capítulos e os apêndices, focados em analisar o romance gótico da escrita e toda mitologia estruturada em torno de suas interpretações. É um trabalho cuidadoso de pesquisa, repleto de detalhes sobre a biografia da britânica, não contemplados em outros textos lidos ao longo desse especial sobre Frankenstein, mas relativamente prejudicado pela diagramação dos mesmos responsáveis pela arte da capa. Temos que entender que livros, além do principal, que é o seu conteúdo, também dependem do suporte para a relação com o leitor. Com espaçamento apertado e excesso de texto por página, a publicação se torna uma leitura cansativa como experiência estética, mesmo que tenhamos mapas e ilustrações em algumas passagens para delinear o que é dito pelo texto e nos fornecer momentos de “descanso”.

O autor, já experiente com um trabalho semelhante realizado anteriormente ao analisar Drácula, de Bram Stoker, segue o mesmo percurso com Frankenstein, de Mary Shelley. Algumas pontuações são semelhantes ao que outros livros já publicaram sobre o legado e o impacto cultural do romance, mas dentre os principais pontos destacados ao longo da leitura, foi possível revisitar as principais possíveis ressonâncias que inspiraram a escritora britânica na concepção do livro que a tornou um marco na história não apenas do movimento romântico, mas da literatura de maneira mais abrangente.  Teria Shelley visitado o histórico castelo da família Frankenstein? Dippel, alquimista conhecido por suas experiências peculiares, também inspirou abordagens na narrativa do romance gótico em questão? Como o galvanismo se mantém presente ao longo das páginas de Frankenstein? E, trazendo para o contemporâneo, numa ilação de quem vos escreve em consonância com o que é exposto pelo autor do livro, como podemos refletir as ideias do clássico com a nossa atual era dominada pelos projetos envolvendo Inteligência Artificial?

Começo pela última pergunta. A mais atual e polêmica. A ambição desmedida de Victor Frankenstein reflete o atual impulso da humanidade em desenvolver tecnologias avançadas. Assim como o cientista buscou desafiar as leis da natureza ao criar a vida, os desenvolvedores de IA buscam superar limitações humanas com a criação de máquinas que supostamente podem aprender, agir e, em muitos casos, superar a inteligência humana. A pergunta que surge aqui é: até onde estamos dispostos a prosseguir em nome dessa ideia de progresso? A história de Frankenstein serve como um alerta sobre a necessidade de responsabilidade ética e moral no desenvolvimento de novas tecnologias. A negligência de Victor em assumir a responsabilidade por sua criação resulta em tragédia, algo que pode ser comparado ao desenvolvimento irresponsável de sistemas de IA que possam ter consequências prejudiciais. Além disso, a relação entre criador e criatura é um tema central tanto na obra de Shelley quanto nas discussões sobre IA. O monstro de Frankenstein não é apenas um produto das habilidades de seu criador, mas também um ser que busca aceitação e compreensão. Essa busca é emblemática da interação entre humanos e inteligências artificiais. À medida que sistemas de IA se tornam mais sofisticados e autônomos, surge a questão de como devemos tratar essas “criaturas”. Elas devem ter direitos? Devemos temer suas capacidades de aprendizado e ação, ou podemos confiar que suas contribuições serão benéficas?

Assim, o romance gótico de Shelley nos instiga a refletir sobre a natureza da humanidade nas criações que produzimos. Por fim, a exclusão social e a alienação, sentidas pelo monstro de Frankenstein, espelham as preocupações contemporâneas sobre a Inteligência Artificial. Ao passo que as máquinas se tornam mais integradas em nossas vidas, há um risco de que certos grupos sociais sejam deixados para trás, saturando o ambiente com uma nova forma de discriminação. O monstro, rejeitado pela sociedade por sua aparência, ilustra como a falta de compreensão e empatia pelos “diferentes” pode levar a consequências desastrosas. Essa ideia se aplica também aos princípios da IA, onde a falta de inclusão e consideração ética pode resultar em sistemas que perpetuam preconceitos e desigualdades. Sobre esse tópico, é possível compreender que Frankenstein não é apenas uma história sobre a criação de vida, mas uma reflexão profunda sobre responsabilidade, ética e relações sociais que são extremamente pertinentes em nossa era de inteligência artificial. Ao considerar os dilemas enfrentados por Victor e seu monstro, somos convidados a avaliar nossas próprias práticas de inovação tecnológica e a garantir que a busca por progresso não desconsidere a humanidade que se encontra ao longo dessa caminhada que precisa ser, de fato, cuidadosa.

O legado de Shelley, portanto, continua a nos guiar nas complexidades do presente e do futuro, por isso tantos escritores retomam seu enredo e tantos pesquisadores se debruçam sobre as peculiaridades de sua narrativa. Agora, de volta ao primeiro questionamento, muito se especula sobre elementos que teriam influenciado a escritora na concepção do livro. Um deles é o castelo de Frankenstein. Essa é uma das questões que intrigam os estudiosos é se Shelley se inspirou em uma visita ao castelo da família Frankenstein ao criar sua famosa narrativa. Embora não haja evidências concretas de que Mary Shelley tenha visitado um castelo especificamente ligado à família Frankenstein, a relação entre a criação de sua obra e o ambiente gótico que a rodeava é indiscutível. Na época em que Shelley escreveu Frankenstein, castelos e ruínas se tornaram símbolos de mistério e terror na literatura romântica. O ambiente da Europa do século XIX, com suas paisagens sombrias e construções imponentes, forneceu um cenário propício para o desenvolvimento de narrativas que abordavam tanto o sublime quanto o grotesco. A própria vida de Shelley foi marcada por experiências intensas e emocionais que poderiam ter se refletido em sua obra. A morte prematura de sua mãe, a relação tumultuada com o poeta Percy Shelley e as suas viagens pela Europa contribuíram para sua visão de mundo e suas ideias sobre a criação e a destruição. O tema da busca pelo conhecimento e suas consequências, central em Frankenstein, pode ser visto como um reflexo das ansiedades da era em que viveu, onde a ciência e a revolução industrial estavam em ascensão.

Embora a obra tenha sido influenciada por uma série de fatores culturais, sociais e pessoais, uma figura notável que merece destaque é o químico e alquimista Johann Konrad Dippel. Dippel nasceu em 1673 e tornou-se famoso não apenas por suas contribuições à química, mas também por suas experimentações com vida e a criação de um composto que ele acreditava que poderia prolongar a vida. Suas teorias alquímicas e suas práticas experimentais refletiam um espírito de curiosidade insaciável, que ecoa nas perguntas centrais de Frankenstein. O uso de cadáveres e a busca pela imortalidade presentes nos relatos de Dippel podem ser considerados antecedentes diretos das experiências de Victor Frankenstein. A importância de Dippel está intimamente ligada ao contexto histórico em que Mary Shelley escreveu. O século XVIII e início do XIX eram tempos de intensas descobertas científicas e filosóficas. A Revolução Científica trouxe novas perspectivas sobre a vida e a morte, questionando crenças arraigadas e propondo novas formas de entender a natureza humana. Dippel, como um precursor de ideias que desafiavam o status quo, certamente deixou uma marca nas mentes de pensadores da época, incluindo Shelley. Além disso, as premissas morais da obra de Shelley implicam que o conhecimento e o poder têm consequências. Victor, ao tentar imitar a criação de Deus, acaba por criar uma criatura que representa não apenas seu fracasso, mas também uma crítica ao abandono da ética científica. Nesse sentido, a desilusão de Dippel com suas próprias experimentações e a percepção de que a busca pela imortalidade pode trazer consigo a destruição e o sofrimento, são temas que ecoam ao longo do romance de Shelley, por isso as constantes aproximações.

E, encerrando, quais os desdobramentos do galvanismo em Frankenstein? Um dos aspectos que intrigam os estudiosos é a influência do galvanismo na concepção de sua obra. O galvanismo, que se refere à técnica de estimular músculos ou nervos com eletricidade, estava emergindo como um tema destacado nas discussões científicas da época, e é amplamente reconhecido como uma possível fonte de inspiração para Shelley. Durante o início do século XIX, a ciência progressivamente começava a desvendar mistérios do corpo humano. O trabalho de Luigi Galvani, ao descobrir que os músculos de rãs podiam se contrair ao serem expostos a uma corrente elétrica, gerou uma onda de fascínio e especulações sobre os limites da vida. O evento que realmente capturou a imaginação de muitos, incluindo Shelley, foi a apresentação do trabalho do físico Alessandro Volta, que posteriormente se distanciou das teorias de Galvani, mas também contribuiu para o desenvolvimento da eletricidade como um campo de estudo. Em 1816, Shelley começou a escrever Frankenstein enquanto passava o verão em Genebra, na companhia de seu futuro marido, Percy B. Shelley, e de Lord Byron. Naquela época, os debates sobre os efeitos da eletricidade na biologia estavam em alta. Este ambiente estimulante e a curiosidade sobre os limites da ciência foram fundamentais para moldar a narrativa que acabaria por se tornar um marco na literatura gótica e de ficção científica.

No romance, Victor Frankenstein, um jovem cientista, busca desvendar o segredo da criação da vida. Ele realiza experimentos que o levam a reanimar um corpo inerte, criando a famosa criatura. O ato de dar vida através de métodos que remetem ao galvanismo fala diretamente às preocupações da época, especialmente sobre os potenciais perigos do avanço científico sem responsabilidade ética. A obra provoca uma reflexão sobre até onde a ciência deve ir e se o ser humano possui o direito de “brincar de Deus”. Além disso, a recepção pública do galvanismo e suas promessas de inovação e descoberta científica rimam com os medos e ansiedades sobre o que a ciência poderia desvelar. A ideia de que a vida poderia ser “fabricada” e não apenas um ato divino gerava um profundo desconforto, que se reflete nas emoções turbulentas de Frankenstein e sua criação. A criatura, resultante da busca desenfreada de Victor por conhecimento, acaba simbolizando as consequências das inovações científicas em um mundo que não estava preparado para lidar com tão grandes responsabilidades. Em linhas gerais, caro leitor, o galvanismo influenciou Mary Shelley em Frankenstein ao fornecer um contexto científico que alimentou suas inquietações sobre a criação da vida e as implicações éticas disso. E, ao longo de Em Busca de Frankenstein: O Monstro de Mary Shelley e Seus Mitos, de Radu Florescu, nós contemplamos essas e outras interpretações do fascinante universo criado pela escritora.

É uma leitura para ser encarada criticamente, mas que nos ensina muito.

Em Busca de Frankenstein: O Monstro de Mary Shelley e Seus Mitos (In Search Of Frankenstein/EUA, 1998)
Autoria: Radu Florescu
Tradução: Luiz Carlos Lisboa
Editora: Mercuryo
Páginas: 296

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