Em 2018, a Solar – Galeria de Arte Cinemática, em parceria com o festival português Curtas Vila do Conde, fez a curadoria da mostra “New Spain”, envolvendo curtas-metragens de 6 cineastas emergentes do cinema espanhol: Inés Garcia, Laida Lertxundi, Carla Andrade, Lois Patiño e a dupla Samuel M. Delgado e Helena Girón. Sobre a seleção, o curador José Manuel López escreveu: “As instalações de New Spain habitam esta paisagem emocional, que é também um lugar mental: os seus autores vivem ou trabalham fora de Espanha, deslocam-se para outro lugar – ou para outro tempo, talvez – e filmam-no em película ou gravam-no em formato digital, mas estas “imagens sem Espanha” remeterão, uma e outra vez, para uma Espanha que será sempre evocada, invocada inclusivamente como um fantasma”. Ainda, diz López: “A viagem e a deslocação – não só físicas, mas também através do relembrar – sempre foram uma ferramenta para “compreender” o mundo, para se sair e voltar estrangeiro de si mesmo, para se desterritorializar (isto é, para se desprender do território familiar como quem se desprende da roupa que vestiu ao longo do dia).”
Se me ocupo longamente das palavras de José Manuel López, é porque elas foram precisas em antecipar as principais características do longa-metragem de estreia da dupla Samuel M. Delgado e Helena Girón, Eles Transportam a Morte, assim como a do último longa de Lois Patiño, Lua Vermelha (criticado aqui durante a Mostra de São Paulo 2020) — Garcia, Lertxundi e Andrade ainda não fizeram longas. Nesta dupla de filmes, existe uma permeabilidade entre as fronteiras do espaço e tempo, passando-se em cenários que funcionam muito mais como não-lugares que evocam uma certa imobilidade do tempo. É também através da mitologia galega que eles falam de suas culturas e identidades, olhando mais para um passado que é tanto real quanto imaginado. Igualmente, os diretores se aproximam em execução, pois é a partir das experimentações formais dessas obras, permeando entre o experimentalismo e o cinema narrativo, que o místico é evocado, sempre com uma devida atenção tanto ao ritmo dos planos quanto um olhar que busca significação nas paisagens naturais.
Localizado contextualmente Eles Transportam a Morte, é hora de individualizá-lo. Em sua narrativa, duas histórias são vistas paralelamente e cada uma começa da maneira mais oposta possível. A primeira se inicia em com o “renascimento”, no fundo do mar, de três marinheiros que faziam parte da tripulação de Cristóvão Colombo, em 1492, mas foram condenados à morte e agora vagam pelas Ilhas Canárias (perto da costa norte da África). Já a segunda trama começa com o suicídio de uma jovem mulher no topo de uma motanha rochosa na Galícia (Espanha). Dos marinheiros nasce a narrativa de sobrevivência dentro da ilha, assim como de fuga diante daqueles que lhes condenaram, enquanto a partir da tragédia do suicídio se acompanha a narrativa de sua irmã carregando o cadáver em um burro, para ser levado até uma “bruxa” local que a ressuscitaria.
Imediatamente, percebe-se a proposição por parte de Delgado e Girón de alguns contrastes: vida e morte; o Velho Mundo e Novo Mundo; feminino e masculino. No Novo Mundo, os três homens vivos parecem mortos que (quase) não falam, vagando pelo meio do vazio e se passando em um tempo quase morto (os planos são longos), iluminados de uma maneira unidimensional que faz com que eles pareçam parte integrante das próprias paisagens e rochas que estão ao fundo deles. Por outro lado, existe uma certa intimidade da câmera com o cadáver da mulher falecida e a jornada de sua irmã. Paradoxalmente, a morta parece ter muito mais textura e materialidade diante da película do que aqueles homens. Ou seja, deste jogo de mise-en-scène, ressignifica-se os conceitos de o que é estar vivo e o que é estar morto. Enquanto uma maldição parece se abater sobre aqueles homens que exploram o Novo Mundo, uma magia parece dar forças para que a jornada feminina continue.
Por outro lado, há algo de muito hipnotizante na experiência de Eles Transportam a Morte que é a justamente a sensação de que, mesmo habitando universos completamente distintos, essas histórias podem se cruzar a qualquer momento. Existe uma desorientação gerada pela falta de especificidade em cada espaço (só há natureza, tela preta e espaços vazios) que aproxima esses dois mundos. Tudo isso culmina na delirante cena onírica em que um dos homens aparece quase que como um erro na película diante da irmã.
Além disso, as duas narrativas se aproximam na interação entre humano e natureza: todos os personagens parecem lutar contra o próprio sistema em que estão perdidos, não só espacialmente, mas também em um próprio sentido existencial. Como deveriam estar mortos, o próprio nome do filme indica que eles são como fantasmas vagando por esses lugares. Portanto, a construção de mise-en-scène da dupla de diretores vai no sentido de fazer esses corpos parecerem figuras alienígenas, cuja aparência no plano parece mais artificial do que natural, como no momento em que o contraplano dos três homens diante do vulcão em erupção oferece. Pendurados entre a vida e a morte, esses são personagens que estão saindo e voltando da tela preta o tempo todo, iluminando-se e sumindo novamente no escuro.
Ainda que exista um certo didatismo desnecessário nos rumos finais da obra, como se os realizadores decidissem despertar o espectador deliberadamente da experiência cinematográfica para explicar a “moral” deste conto mitológico, isso não apaga a própria experiência construída até aqui, cuja “explicação” já poderia ser deduzida das imagens. Afinal, através de um jogo sensorial, Eles Transportam a Morte oferece uma releitura de duas vivências do passado a partir de um olhar místico: a jornada desbravadora (e colonizadora) do homem espanhol pelo Novo Mundo, mas também das mulheres que ficaram sozinhas no Velho Mundo e viveram os tempos de caça às bruxas. Novamente, como em Patiño, este Novo Cinema Espanhol faz cinema político e histórico através da fantasia.
Eles Transportam a Morte (Eles Transportan a Morte, 2021) — Colômbia, Espanha
Direção: Samuel M. Delgado, Helena Girón
Roteiro: Samuel M. Delgado, Helena Girón
Elenco: Xoán Reixes, Valentín Estévez, David Pantaleón, Sara Ferro, Nuria Lestegás, Josefa Rita Míguez Cal, Gallego, Momia Nº 6 del Museo Canario
Duração: 76 mins.