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Crítica | Ela Mora Logo Ali

Para que serve o divino?

por Frederico Franco
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O filósofo alemão Walter Benjamin, sobre a teoria da linguagem diz que a palavra dita é remete à uma essência espiritual, transcendendo um limite tautológico. O ato de comunicar, então, é um modo de unir o espírito e a língua. Comunicar-se, então, é acionar a parte divina da língua. O ser humano não é capaz de criar por meio da palavra: ele apenas rememora a criação e o significado por meio dela. Dessa forma, a comunicação é uma instância de pura profanação do sagrado. Pode-se concluir, segundo o autor, que se a comunicação é profana, quanto mais divino um texto, menos palatável ele é.

O filme Ela Mora Logo Ali, curta metragem, trabalha em um terreno da história oral que trabalha entre o sagrado e o profano de maneira afetiva. Uma mãe de classe baixa encontra na contação de histórias um modo de se conectar com seu filho adolescente com paralisia. A dona de casa, em um ônibus, conhece uma menina por volta de seus quinze anos que lê incansavelmente o livro Dom Quixote. A mãe, analfabeta, pede para a garota lhe contar a história da obra de Cervantes para, então, replicá-la para seu filho. Ambas se encontram diariamente no ônibus, até que a menina deixa de aparecer e faz com que a mãe fique à deriva com seu filho.

O filme de Rafael Rogante e Fabiano Tertuliano é de uma delicadeza ímpar. Todo carinho e ternura entre mãe e filho são explorados por meio de detalhes físicos de afeto entre os dois. A mãe, com gestos leves, parece sempre querer proteger seu filho de tudo e de todos. Quando ela encontra em Dom Quixote um modo de despertar reações em seu filho, sua empolgação é tamanha que, inclusive, realiza interpretações das aventuras do cavaleiro e seu companheiro Sancho Pança. Contudo, quando a garota do ônibus some, a protagonista se vê em uma encruzilhada: como continuar a contação de histórias sem conseguir ler? Ela até consegue comprar um livro que julga ser o romance de Cervantes, mas a leitura é o grande empecilho. No entanto, ao reconhecer uma palavra no livro, a mãe retoma seu entusiasmo e conta, à sua maneira, histórias de Dom Quixote de la Mancha. 

Em Ela Mora Logo Ali, a palavra escrita, erudita, pouco palatável – aqui no caso, o livro em si – é o mais próximo da essência divina de um texto: como é sabido, a obra não é exatamente um livro simples de ser lido. Por outro lado, a linguagem oral, cotidiana, comunicacional da mãe, é o profano. A protagonista, assim, nada mais faz do que negar a essência divina devido a sua realidade enquanto analfabeta. E isso pouco importa: para se conectar com o filho, nega-se o divino, o sacro. Para a mãe, ver uma ponta de felicidade em seu menino vale mais do que qualquer coisa. A linguagem oral, aquela que comunica, pode não ser celestial, mas é a essência do ser humano. A mãe, ao construir seu próprio Dom Quixote, destrói definitivamente qualquer possibilidade de essência espiritual da história de Miguel de Cervantes. Além disso, a narrativa oral permite ao narrador criar em cima daquilo que já existe. Nenhuma história contada pela oralidade é a mesma. Pela fala, tudo é profano. Mas quem se importa com o divino depois de milênios de profanação?

Ela Mora Logo Ali – Brasil, 2023
Direção: Rafael Rogante, Fabiano Barros
Roteiro: Fabiano Barros, Rafael Rogante
Duração: 16 min.

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