“O amor não é sempre um refúgio?”
Imagine que você é filho de alguém que dedicou sua vida à política, participando de guerrilha urbana, movimentos revolucionários e sendo, ainda jovem, um dos líderes da resistência contra uma ditadura militar e, posteriormente, já idoso, eleito presidente. Uma figura lendária na política de seu país, correto? Imagine que essa figura é José “Pepe” Mujica, presidente do Uruguai entre 2010 e 2015, e você seja Emir Kusturica e esteja gravando um documentário sobre a vida do ex-presidente uruguaio. Essa é a premissa de El Pepe, Uma Vida Suprema.
Coloco dessa forma porque durante toda a projeção presenciamos uma conversa entre Mujica e Kusturica em vários pontos da casa do uruguaio, como se fossem simplesmente conversas do cotidiano entre pai e filho. Não há nenhuma ligação desse gênero entre o político e o cineasta, obviamente, porém toda atenção e admiração do diretor ao ouvir os relatos do protagonista de sua obra criam uma atmosfera totalmente paternal. E é através dessa abordagem que o realizador começa a dissecar o passado do ex-guerrilheiro de maneira orgânica, adentrando o íntimo do entrevistado como se estivéssemos todos saboreando um mate em uma bela tarde da primavera uruguaia.
Além da ambientação durante esses momentos, sempre em locais calmos e em meio a natureza, a utilização de planos fechados é uma das principais razões que trazem esse ar aconchegante para a conversa. Enquanto Mujica vai relembrando conquistas e derrotas de sua vida política e pessoal, Kusturica, entre cenas e fotografias desse passado de enfrentamento, faz uso do primeiríssimo plano em seu próprio rosto, possibilitando percebermos seu foco absoluto e admirado entre as baforadas que dá em seu charuto.
Ao entrevistar companheiros de Pepe entre os relatos do protagonista para ajudar a reconstruir as histórias, como Eleuterio Fernández Huidobro, ex-integrante do MLN-T (grupo dos guerrilheiros) e ex-ministro da Defesa no governo Mujica, o diretor traz cenas da obra Estado de Sítio, do grego Costa-Gavras, com o objetivo de ilustrar as falas dos personagens. Não somente com esse intuito, porém, já que os militares aparecem sendo ridicularizados, como na cena que tentam desligar, sem sucesso, diversos alto-falantes exaltando Che Guevara, trazendo um ar cômico que casa bem com o tom leve apresentado majoritariamente na fita.
Fica evidente a paixão de Mujica pela vida. Desde a maneira como relembra episódios dos mais diversos de sua própria vida até como fala indignado sobre as dificuldades vividas por uma grande quantidade de pessoas, demonstrando sua imensa empatia (e seu orgulho ao lembrar que diminuiu imensamente a taxa de pobreza do país durante seu mandato). E o quesito da obra que conversa melhor com essas exposições do ex-presidente é trilha sonora. Kusturica utiliza o tango, ritmo referenciado pelo entrevistado, para costurar a emoção dos relatos com a do gênero musical, resultando em cenas absolutamente agradáveis aos olhos e ouvidos.
El Pepe, Uma Vida Suprema apresenta-se como um documentário da vida de uma enorme personalidade política de um dos nossos países vizinhos, no entanto é muito mais. O filme é praticamente uma ode à paixão pela vida e pela busca de um mundo mais humano, igualitário e justo, abdicando do supérfluo e do material. Tudo isso durante uma adorável conversa, com um adorável senhor em algum adorável recanto do Uruguai.
El Pepe, Uma Vida Suprema (El Pepe, Una Vida Suprema) – Argentina, Sérvia, Uruguai, 2019
Direção: Emir Kusturica
Roteiro: Emir Kusturica
Elenco: José Mujica, Emir Kusturica, Eleuterio Fernández Huidobro, Lucía Topolansky
Duração: 74 minutos