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Crítica | Edifício Master (2002)

por Fernando JG
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Revisitar esse lugar chamado Eduardo Coutinho é sempre intrigante, principalmente porque a gente é colocado de frente com a figura do Outro, e aí temos de nos deparar com a sua vida, suas histórias e nos colocarmos no lugar dele pelo tempo que o filme durar, como num exercício de empatia. Essa maneira de alteridade – em que a gente percebe a subjetividade através da diferença, momento este em que nos reconhecemos distintos – é o jogo cinematográfico e de estilo do documentário Edifício Master (2002). Propondo uma estética do olhar, Eduardo Coutinho pensa a significação da existência a partir de uma relação em que eu só existo pela figura do Outro, como se o alheio fosse o responsável por validar a mim mesmo, e também que esse Outro necessite de mim para validar a sua existência. Simples, real e cotidiana, a câmera passeia apartamento por apartamento tentando entender como ocorre a vida dentro de cada residência. 

O cineasta propõe que acompanhemos o interior do Edifício Master, um prédio com 276 apartamentos e com cerca de 500 pessoas, situado em Copacabana, a um quarteirão da praia. Com a equipe de filmagem morando no local por três semanas, foram entrevistados 37 moradores. De algum modo, a equipe também vira moradora e aos poucos a câmera intrusa e curiosa consegue entrar na intimidade dos residentes, e então vamos conhecendo a vida de cada pessoa, como se fôssemos vizinhos de apartamento. Pelo tempo do filme, ficamos frente a frente com pessoas e relatos ilustres, iniciando com Vera Lúcia. Ela, que é moradora antiga, apresenta a história do prédio e já dá a ver a miscelânea do Edifício. Com a ambientação feita, mergulhamos definitivamente no Master, batendo de porta em porta.  

Um estudo antropológico, o longa consegue se fazer muito interessante para distintos públicos, que dependendo do momento poderá se reconhecer mais ou menos com aquelas pessoas. O grande desafio que é gravar essa gente num prédio populoso como o Master é transformado em uma viagem epifânica através dos rostos e dos relatos: é a revelação de um mundo inteiro de subjetividade e particularidade que passa a existir a partir da documentação do real. Coutinho, de algum modo, dá a ver o que não era visto. Uma ideia hegeliana da alteridade, fica a questão: Quem era essa gente antes de ser vista? Aquilo que não era nada passa a afirmar sua existência e sua diferença no momento em que se apresenta ao olhar do telespectador. 

É o caso de Daniela, uma professora de Inglês, que morou 8 anos fora do Brasil e convive com síndrome da fobia social. Como ela sofre de neurose, tudo parece muito opressivo, sobretudo a aglomeração típica de Copacabana. Ela escreve e desenha para dar vazão a essa interioridade inquieta. O mais interessante é a temática que ela sempre cai enquanto artista. Seu poema, chamado Opium Dreams, e sua tela, Floresta do Desespero, parecem ser um fluxo intenso dos sentimentos de Daniela, que aparentam ser obscuros e aflitos. Quando o Eduardo pergunta para ela o porquê de não olhá-lo nos olhos enquanto conversam, ela lhe diz que não tem autoconfiança, e que prefere não olhá-lo e então ela completa: “Muitas vezes eu fico feliz quando eu subo e desço o elevador sozinha. Não porque eu não vou perder tempo parando em um andar, mas porque eu não vou ter que ver e nem ser vista”.  De algum modo, o olhar também sempre recai em perceber o outro, e essa percepção deságua, invariavelmente, em um julgamento de valor, o que é natural do ser humano, já que temos uma faculdade inerente de julgar. Talvez seja isso que Daniela queira dizer quando evita o ato de ver e ser vista, que também pode se tornar opressivo. E é muito interessante esse modo de subjetividade da Daniela, já que o apartamento em que vive é claustrofóbico, mas lhe dá uma sensação de liberdade, enquanto o mundo aberto se inverte e converte-se em um local opressivo e incômodo. Isso é o importante: a perspectiva da outra pessoa sobre a realidade nunca é a mesma da nossa. Essa é a Daniela, uma complexa personagem do Edifício Master.  

Esse método de conversa documental não é novidade em Edifício Master. A premissa de que ao longo de sua filmografia estamos sempre acompanhando as diferentes cenas de um mesmo filme parece oferecer a Coutinho uma marca estilística singular e uma unidade formal de prestígio. Seus filmes apresentam uma estética do olhar, que se mistura com o diálogo, quase como uma terapia. Fato é que na frente da câmera só existe um personagem: o que fala. Mas por trás tem o interlocutor. A escolha de sempre olhar para um determinado recorte social em seus documentários, como a classe-média baixa do Rio de Janeiro, moradora de um prédio decadente, expõe através da câmera a cosmovisão de Eduardo Coutinho. O cineasta vê o mundo a partir da escuta do Outro, e dá espaço para ver de que lugar esse diferente fala. Assim, o diretor parece extrair do coletivo, que é o populoso prédio, o particular, que é a singularidade dos moradores, e com isso consegue universalizar esse particular a ponto de imortalizá-lo na história, pois o que  é visto é lembrado. 

Edifício Master é, ao mesmo tempo, a continuação e o início de seus outros filmes. De modo mais prático: há uma continuidade em seu cinema. Cabra Marcado Para Morrer (1984) atravessa, entre outros, o filme aqui criticado, Jogo de Cena (2007) e Últimas Conversas (2015). Ainda que tratem de temas distintos, a tentativa de entender o Outro se abre como um idealismo de Coutinho no exercício de compreender o mundo e o seu diferente, como a gente pobre no Nordeste, uma comunidade no Rio de Janeiro, ou um quase cortiço em Copacabana. E ele vai ainda mais longe quando dá a ver as vidas das mulheres, ou ainda quando ele filma os relatos dos adolescentes e os problemas comuns dessa juventude. A sua estética do olhar se dá pela mirada da câmera, que atua como se fosse o olho humano, captando o detalhe e a intimidade.

As histórias dos seus entrevistados também se misturam entre verdade e mentira, como na fala de Alessandra. Em uma entrevista você pode mentir ou falar a verdade, fica sempre ao critério de quem fala. No entanto, Alessandra, que se denomina uma “mentirosa verdadeira”, escancara os problemas da obra do próprio Eduardo Coutinho, e então surge a questão: dentro de sua filmografia, o que é que distingue ficção da realidade? documentário ou ficção? Onde estão os limites? Ainda mais: E se tudo tem um nível de performance, sobretudo a atuação dos entrevistados, e se os entrevistados a dado momento também viram personagens fílmicos, há uma diferença clara no seu método? Me parece evidente que os seus filmes e seus entrevistados atuam como num grande Teatro do Mundo, no qual o tempo todo somos personagens da realidade. 

Edifício Master é uma viagem estática e imersiva através do rosto de quem fala. Um longa-documentário importante para quem se interessa pela escuta, e também para os que têm a curiosidade atiçada pela descoberta do que há no interior da janela e da porta alheia, como ocorre em Dentro da Casa (François Ozon, 2012), o filme mata essa curiosidade e oferece histórias singulares e arrebatadoras que o Edifício resguarda dentro da sua decadente arquitetura.

Edifício Master (Brasil, 2002)
Direção: Eduardo Coutinho
Roteiro: Eduardo Coutinho
Elenco: Residentes do Edifício Master
Duração: 110 min.

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