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Crítica | E a Vida Continua (1992)

Terra dura, nuvens de algodão.

por Pedro Roma
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“Onde fica a casa do amigo?”

perguntou o cavaleiro ainda no limiar da aurora.

O céu parou um instante.

Um Passante ofereceu à escuridão das Areias

[o ramo de luz que trazia nos lábios,

com o dedo apontou um álamo e disse:

“Antes daquela árvore

há uma alameda mais verde que o sono de Deus

e lá o amor tem um azul do mesmo tamanho

[que as penas da sinceridade.

Segue até o fim dessa rua, que termina atrás da adolescência,

e então dobre em direção da flor da solidão.

a dois passos da flor,

fica ao pé da fonte dos mitos eternos da Terra

e um medo transparente te dominará.

Na intimidade que flui no espaço, ouve um roçar:

olha uma pequena criança

que subiu num alto pinheiro para apanhar

[um filhote no ninho da luz,

e, então, pergunta a ela:

“Onde fica a casa do amigo?”

Sohrab Sepehri

Em 1987 o cineasta iraniano Abbas Kiarostami (1940 – 2016) lançou o filme Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, obra essa que o lançou ao mundo ocidental quebrando barreiras culturais, políticas e linguísticas de uma forma única que apenas a arte cinematográfica consegue, ainda mais em uma época anterior ao cinema digital, às redes sociais, aos streamings e ao compartilhamento de filmes via torrent. Isso se fez possível, pois o referido diretor discute em suas obras tanto problemas locais, como também universais, trazendo ao espectador mais desavisado a percepção de que, afinal de contas, os iranianos não são tão diferentes de nós, sofrem e amam da mesma forma. 

A assim nomeada pelos críticos, a Trilogia Koker é composta pelo já citado Onde Fica a Casa do Meu Amigo (1987), por Além das Oliveiras (1994) e pela obra foco dessa crítica E a Vida Continua (1992). O vínculo que liga as três narrativas é o fato de ambas se passarem na mesma localidade, Koker, uma pequena vila na província de Gilan, no Irã, sendo que os últimos dois filmes são obras que existem por conta do filme anterior, onde o diretor se valeu do uso de metalinguagem para narrar histórias onde a narrativa anterior é parte da diegese, ou melhor dizendo, da mentira contada a 24 quadros por segundo, do próximo filme. Tendo elementos dramáticos que se colocam entre a fronteira do drama ensaiado e do documentário e com o uso de não atores os quais plasmam na película muitas de suas experiências próprias, de amor, luto, esperança e resiliência, Kiarostami entrega uma obra dialética, onde a todo momento os opostos dialogam, sejam os grandes planos abertos com os fechados, sejam os espectadores do filme com o microcosmo iraniano ou a realidade com a ficção.

Com esse uso único da linguagem cinematográfica aqui colocado é bom pontuar que para além do cinema Abbas Kiarostami era também poeta e fotógrafo. Elementos como a contemplação da natureza e do ambiente ou a pequena dimensão do ser humano frente a realidade material pode ser observada em algumas de suas poesias. Como pontua o autor Arlindo Rebechi Junior em seu ensaio Abbas Kiarostami, uma poética da incerteza o próprio diretor esclarece melhor esse ponto em seu trabalho artístico: “Em 1995, Kiarostami, em um colóquio em Paris, refletiu sobre o papel do artista e do leitor/espectador diante da obra de arte, a qual não nos informaria sobre um só mundo, mas sobre muitos deles. O sentido libertador da arte, para o cineasta, está no seu poder de sempre nos falar uma nova verdade. Para ele, o artista deve assumir um lugar no território da incerteza, sem jamais se colocar como mestre absoluto da verdade…’’. Com isso em mente, continuemos nossa investigação sobre o filme E a Vida Continua. 

Em 1990 um terrível terremoto assolou o Irã, matando cerca de até 40 mil pessoas. Alguns dias depois Kiarostami junto a seu filho viajariam de carro de Teerã até a pequena vila de Koker em busca de Babek Ahmed Poor, o ator mirim de seu filme anterior, Onde Fica a Casa do meu Amigo?. Cinco meses após essa busca ele começaria a gravar a presente obra, através das suas experiências durante a viagem. Essa relação íntima entre autor e objeto será algo de extrema importância nesse road movie iraniano, onde os atores Farhad Kheradmand e Ahmad Ahmadpour viverão respectivamente o próprio diretor Abbas Kiarostami, como personagem dentro do filme, e seu filho, percorrendo as ruínas de pequenas cidades até pequenas vilas e mesmo acampamentos de sobreviventes desabrigados pelo terremoto. Durante a busca por um caminho que os leve até Koker, após descobrirem que a estrada principal está paralisada por um infindável engarrafamento, eles decidem fazer uso das estradas de terra que cortam as pequenas vilas da região. Em seu caminho ambos irão conhecer vários sobreviventes do terremoto e até mesmo encontrarão atores do filme anterior, narrando suas experiências de perda e esperança.

Se valendo, em seu primeiro ato, de enquadramentos com a moldura da janela do carro, o diretor busca nos mostrar a confusão que se segue após um acontecimento desses, com vários elementos de extra campo, tais como sirenes de ambulâncias, e personagens que não estão necessariamente no enquadramento. Dessa forma, continuamos a contemplar e descobrir o horror do ponto de vista do viajante, do filho do diretor. A partir do segmento em que eles começam a seguir caminho pelas estradas de terra e passarem pelas pequenas vilas o ponto de vista muda, passamos ao olhar de Kiarostami seguindo por estradas sinuosas e vazias. 

Após o encontro com um homem que diz ter participado de seu filme de 1987 e se valendo de que poderia ajudá-los com um caminho para Koker, passamos ao segundo ato da obra. Uma das frases mais interessantes desse segmento se dá  quando esse homem em questão informa que está carregando uma latrina com ele pois, afinal de contas, os sobreviventes vão precisar dela. Chegando a vila onde ele mora, a narrativa sai do carro e passa a seguir os protagonistas diretamente nesse local. É onde o filho passa a conhecer as pessoas que ali moram, em especial uma mulher que está lavando roupas, apesar de ter perdido vários parentes na tragédia. Há um diálogo muito belo acerca de como ela crê que aquilo deve ter sido vontade de Allah enquanto, do outro lado, o menino argumenta dizendo que não é Allah o responsável por aquele terror. Enquanto isso, seu pai conversa com um jovem casal que teve que se casar apenas um dia após perderem seus primos e tios, pois se não o fizessem, teriam de aguardar mais um ano. O jovem, interpretado por Hossein Rezai, narra como teve que dormir junto de sua mulher em uma tenda improvisada, enquanto ela, no segundo andar da casa, coloca água para as flores. Apesar de tudo, a vida tem que continuar… Creio ser fortuito aqui apreciarmos mais alguns poemas de Kiarostami, que nos apontam a dimensão poética desses atos, aparentemente pequenos:

A noite

o mar

o inverno.

O clarão da primeira lua outonal

na janela

estremece os vidros.

A árvore de marmelo

floresceu

numa casa abandonada.

O aroma das nozes

a fragrância do jasmim

o aroma da chuva sobre a terra.

Podemos ver por esses versos quão grande e imponente é a Natureza para o poeta diretor, ao mesmo passo, também, o quão frágil e transitória a viagem humana nesse mundo também o é, e aqui vejo que ele trabalha nesse filme o valor mais necessário para a nossa sobrevivência emocional, a resiliência de se continuar vivendo, não sozinho, mas junto de outros, mesmo após a vida desabar sobre nós. Isso se torna claro quando, já no terceiro ato, Kiarostami encontra o ator Mohammad Reza Parvaneh, que sobreviveu ao terremoto por conta de ter sido picado por mosquitos no seu quarto e assim ter saído de sua casa durante a noite. Os três percorrem as estradas de terra até um acampamento para desabrigados, onde o filho do diretor pede para ficar, pois deseja acompanhar o jogo de futebol do Brasil. Apesar de tudo os moradores do local estão instalando uma antena para captarem o jogo, afinal a vida precisa seguir em frente, como deixa claro o homem que está arrumando a antena no alto de um morro, por onde o diretor segue viagem e se encontra com ele enquanto sai do local. Ele perdeu muitos de sua família, mas assim mesmo está ali.

Mais ao final da obra vemos enquadramentos em planos abertos bem amplos, muitas vezes mostrando as ações a distância, que junto do uso de close-ups colocam sujeito e cosmos em pé de igualdade em grandeza e dimensão, pois rochas e almas foram partidas pelo mesmo abalo sísmico. Dirigindo por mais uma estrada, perto de alcançar finalmente seu objetivo, reencontrar um velho amigo, Kiarostami nega carona a um transeunte na estrada. Contudo, quando ele chega a uma estrada sinuosa e muito íngreme, será ele a ajudá-lo a empurrar o carro para assim continuar seu caminho, enquanto olhamos a vastidão do mundo ao som de Mozart.

E citando novamente o artigo de Rebechi Junior, é, ainda, fortuita a seguinte percepção para a análise do presente filme: ‘’Um de seus grandes críticos, Youssef Ishaghpour, demarca com precisão o lugar da natureza na fotografia de Kiarostami e o modo como essas formas de representação estimulam e sugerem que seus leitores compreendam a própria finitude e os limites da vida: a natureza, com o indizível de seu mistério, tendo existido antes dele e lhe sobrevivendo, dispensa-o perfeitamente. Mas se, na contemplação da beleza, o homem sente sua própria solidão de ser mortal, a beleza, em sua aparição, lhe revela de forma paradoxal por via negativa, a sua finitude e a sua eternidade de ser mortal-imortal. O “inteiramente outro” da natureza, separado, intocável, inabordável, essa aparição do longínquo em seu recolhimento só se torna visível graças à discrição, à distância, ao silêncio daquele que vai a seu encontro: por sua intimidade essencial com o numinoso e seu distanciamento de toda condição humana determinada, de todos os vínculos exteriores, por sua própria ausência para si mesmo e sua solidão absoluta. Assim, o próprio efêmero, o “tempo”, torna-se imagem da eternidade.’’

Ou como o próprio diretor pontuaria em um de seus poemas:

Deito-me

sobre a terra dura,

nuvens de algodão.

E a Vida Continua (Zendegi va digar hich) – Irã – 1992
Direção: Abbas Kiarostami
Roteiro: Abbas Kiarostami
Elenco: Farhad Kheradmand, Buba Bayour, Hocine Rifahi, Mohammad Reza Parvaneh
Duração: 95 min.

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