O fato de Dylan Dog ser um hipocondríaco o coloca muitas vezes em situações difíceis, tendo que lidar com casos ligados a hospitais, doenças misteriosas ou situações médicas que genuinamente assustam o Detetive do Pesadelo. Muitos anos depois da presente aventura, o personagem ganharia uma história que, de maneira definitiva, demonstraria o seu horror pelas doenças e o colocaria diante da Entidade responsável por elas, a odiada Mater Morbi. Nesta história de 1987, porém, não é o personagem que está, inicialmente, em uma situação delicada de saúde. Mas ele tem a oportunidade de exprimir o seu medo de anestesias e de hospitais como um todo, quando é contratado por uma residente que está em luto pela morte do pai. A questão que ela levanta é a seguinte: muitos pacientes, em cirurgias muito simples daquele hospital, têm morrido na mesa de cirurgia, e não raramente após a operação terminar, mesmo tudo tendo dado certo durante o procedimento.
Confesso que esperava muito mais dessa história. O roteiro de Tiziano Sclavi e Luigi Mignacco começa indicando possibilidades bem mais interessantes e potentes do que esta que vemos se concretizar aqui, basicamente uma macabra e bem mais exagerada versão de Frankenstein, elencando uma mistura maluca de giallo com narrativas trash, típicas de filmes B — e em certa medida, de maneira mais distanciada e ligada a apenas um aspecto particular da trama, em seu desfecho, me lembrou até de Re-Animator. Talvez o problema central do peso dramático esteja no fato de que o título nos indica uma coisa e ela é apenas superficialmente abordada pelo roteiro. Dá-se a impressão de que estaremos diante de uma história de espíritos, de alguma perturbação que leva as pessoas à morte e faz com que suas almas vejam seus corpos mortos em dado momento da operação e da anestesia. Seria muito legal que este lado fosse explorado, mas esta não é a proposta da trama.
Em dado momento, há uma virada no tema que não faz muito bem à aventura. Se por um lado, o texto serve como uma necessária e bem realizada denúncia à corrupção que existe nos meios hospitalares e institucionais quando falamos de doação de órgãos — claro que aqui toda a situação é misturada com psicopatia, ingredientes de terror e nuances espirituais, para efeito dramático e ficcional –, por outro, não traz o fulgor de muitas histórias do Detetive do Pesadelo, algo que infelizmente se espalha por diversos aspectos da edição. Citemos o caso de Groucho como exemplo. Eu sei que tem leitores que não suportam o personagem e não acham graça no que ele faz, mas eu não sou um desses. Eu adoro Groucho e o acho muito engraçado. Pelo menos na maioria de suas aparições. Aqui, porém, quase a totalidade de suas falas são forçadas e realmente não possuem graça alguma. Além disso, sua apresentação ultrapassa a linha do constrangimento, com ele insistindo em contar piadas absurdas para a cliente da vez, sem nenhuma premissa que desse algum suporte ou fizesse algum sentido para essas gracinhas.
O desfecho de Entre a Vida e a Morte traz algumas cenas de ação para temperar o drama, colocando em cena o monstro criado com várias partes de órgãos recolhidos pelo anestesista do hospital. No fim das contas é a revelação de um serial killer numa carapuça de cientista maluco, o que é interessante como conceito de terror, mas funcionaria melhor num texto que desde o início apontasse para este caminho. O cinismo dos autores, nos últimos quadros, me arrancou um bom riso nervoso. O fato de o diretor do hospital ser um cúmplice de todo aquele horror preenche a suspeita que tínhamos dele o tempo inteiro e mostra que, em um lugar onde algo muito terrível acontece, é bem provável que existam mais coisas escondidas e mais pessoas que fizeram parte da perpetuação desses eventos macabros.
Dylan Dog – Vol. 14: Entre a Vida e a Morte (Fra la vita e la morte) — Itália, novembro de 1987
No Brasil: Mythos, 2003
Roteiro: Tiziano Sclavi, Luigi Mignacco
Arte: Luigi Piccatto
Capa: Claudio Villa
100 páginas