Na minha crítica com spoilers da primeira parte da adaptação cinematográfica de Duna nas mãos de Denis Villeneuve, falei bastante sobre o estudo de personagem intimista de Paul Atreides (Timothée Chalamet) no filme anterior, o que fez muita gente classificar a obra como tediosa ou falha em sua construção de mundo. Mesmo discordando, entendo essa leitura por parte do público, uma vez que Villeneuve sacrifica tantos elementos e personagens deste universo para focar no drama do protagonista, em um épico que muitas vezes soa contraditório na forma que é tão pessoal, tão diluído na perspectiva de Paul em detrimento da riqueza temática do material de origem.
Na segunda parte, Villeneuve mantém uma abordagem similar, na forma que a produção descarta elementos políticos e se apropria mal de muitos personagens coadjuvantes, como o Barão Harkonnen (Stellan Skarsgård), Rabban (Dave Bautista), Gurney Halleck (Josh Brolin), Feyd-Rautha Harkonnen (Austin Butler), a Princesa Irulan (Florence Pugh), o Imperador Shaddam IV (Christopher Walken, claramente perdido no papel) e até mesmo Lady Jessica (Rebecca Ferguson), que é um pouco escanteada para que Chani (Zendaya) seja a principal parceira de Paul. Os personagens ainda funcionam dentro da proposta narrativa e conseguem ser distintos e impactantes em suas participações menores, mas todos têm suas singularidades e arcos renunciados para servirem ao desenvolvimento do protagonista.
Por mais que isso possa ser frustrante em determinados momentos, exponho esse fato mais como uma explicação da abordagem de Villeneuve do que realmente uma crítica negativa, uma vez que é preciso fazer certas escolhas corajosas para adaptar algo tão denso e tão complexo quanto o trabalho de Frank Herbert. Até me pergunto se, para quem conhece o material literário, é mais difícil de engolir tais mudanças ou mais fácil de se afeiçoar a determinados acontecimentos e figuras por conta do contato prévio. De qualquer forma, nem tudo é diluído na adaptação, que precisa ser elogiada e destacada em tantos outros quesitos.
Se o lado político não ganha atenção, o mesmo não pode ser dito da perspectiva religiosa. A sequência pesa a mão nas discussões messiânicas que envolvem o debate sobre fundamentalismo, fé e misticismo do universo, algo que alimenta a dramaturgia em sua peça-chave: o conflito de Paul Atreides em assumir seu papel de líder religioso em uma Guerra Santa. Não penso que a narrativa realmente atinge a profundidade temática que aparenta ter em seu nível de seriedade (a mitologia é tão vasta que precisaríamos de umas 5 partes), mas há um trabalho tão interessante no retrato da cultura Fremen que aborda fanatismo, tribalismo e costumes peculiares que realmente expande a construção de mundo para além da técnica e do visual.
Existe algo até perturbador em muitas cenas e elementos do filme que circulam as profecias, principalmente aquelas que envolvem previsões e alucinações. O cineasta vai criando um espaço ritualístico e sobrenatural em torno do protagonista que é fantasiosamente fantástico de acompanhar ao passo que predições acontecem e cerimônias/ritos são concluídos, como se passagens de uma escritura ganhassem vida e parábolas alimentassem doutrinas em tempo real, com muito disso passando pelos olhos crédulos de Stilgar (Javier Bardem) e os pensamentos cínicos de Chani, que enxerga o homem falho por trás do dogma. Ambos os coadjuvantes são os melhores parceiros do protagonista, justamente porque o ordenamento narrativo dá o espaço necessário para eles brilharem, diferente de alguém como Rabban ou Gurney.
Tudo isso também funciona com maestria por conta da imersão que Villeneuve cria através de mais um trabalho visual majestoso e artesanal. O deserto é praticamente um personagem, na forma que Arrakis deixa de ser estéril para ganhar contornos fabulosos e alegóricos no jeito que o sol bate no rosto de Paul ou como as cores da areia soam vivas, através de mais um uso impressionante de cor e luz por parte de Greig Fraser, ganhador do Oscar de fotografia. Da mesma forma, o mundo Harkonnen é belíssimo em seu visual monocromático que superficialmente pode até soar maniqueísta, mas que na verdade torna tátil a crueldade de seus personagens e a sua falta de vida. Por fim, a ótima trilha sonora de Hans Zimmer dita o tom do deserto em sua ópera espacial suntuosa de sons metálicos.
O espetáculo vai gradualmente se intensificando, ficando cada vez maior em escopo e impactante em suas texturas técnicas que nos colocam numa jornada homérica e epopeica de dimensões sensoriais que só a sala de cinema pode proporcionar. É tão gostoso e gratificante ver um blockbuster que parece um blockbuster e não uma abominação de computação gráfica. Até a coreografia dos combates e as set-pieces de ação ganharam melhorias em relação à primeira parte. Mesmo em seus erros narrativos e simplificações temáticas, que podem ser melhores discutidas em uma leitura com spoilers da trama, é difícil não ser fascinado por algo visualmente tão enorme, selvagem e maximalista ganhando corpo no que é um dos pilares da ficção científica e da fantasia: criar mundos fantásticos e nos transportar para o inenarrável.
É difícil encontrar uma palavra melhor para Duna: Parte 2 do que épico, porque é ainda mais difícil sair da sala de cinema sem atestar que acabamos de ver algo absolutamente gigantesco. Sim, podemos criticar a eterna batalha de comunicação que Villeneuve faz entre o íntimo e o amplo, da falta e descarte de muitos elementos temáticos que poderiam ser aprofundados ou até da narrativa que mais uma vez caminha numa linha de fazer preparativos para a próxima sequência, mas consigo facilmente entender determinadas escolhas e até fechar os olhos para alguns defeitos em face de uma experiência cinematográfica tão rara. Não falo só de estética ou de técnica, mas também de maravilha e do êxtase que o cinema de espetáculo pode oferecer.
Duna: Parte 2 (Dune: Part Two) – EUA, 2024
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Jon Spaihts, Denis Villeneuve (baseado em romance de Frank Herbert)
Elenco: Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Josh Brolin, Stellan Skarsgård, Dave Bautista, Zendaya, Charlotte Rampling, Javier Bardem, Babs Olusanmokun, Austin Butler, Florence Pugh, Christopher Walken, Souheila Yacoub
Duração: 168 min.