Não conhecia Max Evry, jornalista, crítico de cinema, historiador e autor do livro sob análise que aborda os bastidores da conturbada produção de Duna, de 1984, dirigido por David Lynch, mas a leitura de sua obra me fez imediatamente concluir que ele deve ser uma pessoa obsessiva – no bom sentido – e honesta, com uma clareza muito grande sobre o que se dispôs a escrever ao longo de dois anos de muita pesquisa catapultada, segundo ele mesmo conta em seu prólogo, por uma conversa que ele teve com um diretor de renome que esteve brevemente ligado a um remake da obra máxima de Frank Herbert que afirmou que ele não gostaria que seu filme fosse “exagerado (“campy“, que tem uma conotação que reúne exagero com breguice em uma palavra sem uma tradução muito boa para o português que eu conheça) como a versão de David Lynch”. Uma Obra-Prima em Desordem é, portanto, uma espécie de resposta bem tardia a esse diretor que ele não nomeia, mas que não é difícil deduzir quem é, e uma leitura enriquecedora sobre um filme definitivamente problemático.
E Evry reconhece que Duna é cheio de questões mal resolvidas em todas as searas, seja por Lynch jamais ter sido o diretor correto para essa adaptação, seja pela interferência incessante de Dino e Raffaella De Laurentiis, os “donos do dinheiro” juntamente com a Universal Pictures no lado da distribuição e marketing. O que o autor procurar fazer é mostrar o porquê de o filme ter ficado como ficou e encontrar, em meio aos problemas, seus aspectos positivos. Pessoalmente, como minha crítica do filme deixa bem claro, também reconheço o potencial desperdiçado que foi a produção, mas eu gosto bastante do resultado final, pois é uma obra com muita personalidade e que conta com um elenco multinacional do mais alto gabarito e que é raro de se ver por aí mesmo nos dias de hoje, além de uma trilha sonora que até hoje escuto em meu vinil comprado na época e guardado como um tesouro.
Além disso, Max Evry sabe que exagerou. Seu livro jornalístico é, uma jornada pelos bastidores da produção dividida em capítulos na ordem das fases clássicas (pré-produção, produção, pós-produção, esta última incluindo o lançamento e o marketing) e complementada por um capítulo dedicado ao legado do longa, ao mesmo tempo em que é, também, uma “História Oral”, ou seja, uma reunião de trechos de entrevistas conduzidas por ele com uma enorme quantidade de pessoas envolvidas na produção, trechos esses que são espalhados ao longo do livro em seções dedicadas ao final de cada capítulo. Apesar de essa categoria jornalística não me agradar muito, a palavra chave é o “também”, ou seja, a História Oral existe, aqui, como um complemento e, igualmente, como uma forma de mostrar que Evry realmente não hesitou nem por um segundo em mergulhar o mais a fundo que podia em todas as histórias por trás da produção, inclusive algumas contraditórias.
Quando está contando a sua história com sua própria voz, Evry faz um ótimo trabalho histórico-jornalístico equilibrando uma sucessão de interessantes anedotas que vão desde como Herbert escreveu seu livro, passando pela escolha do diretor e do elenco (com listagens completas de candidatos e os porquês da não contratação e contratação deles) e chegando nas minúcias do cotidiano da produção, com a construção de cenários gigantescos no estúdio de Churubusco, no México, com constantes faltas de luz e toda a sorte de problemas e o design dos figurinos e dos vermes da areia, além da contratação e ” “descontratação” de equipes de efeitos especiais John Dykstra, por exemplo, largou o projeto pela exigência da produtora de ele fazer o trabalho no México, levando à entrada de Carlo Rambaldi e assim por diante. O autor consegue criar um panorama de um crescente pesadelo que mergulha nas sensibilidades criativas de David Lynch da mesma forma que lida com as sensibilidades financeiras de Raffaella de Laurentiis, aos poucos construindo um vívido cenário de gastos excessivos, abordagens contrastantes, economias quase ofensivas e cortes e recortes de uma obra que, depois, ainda ganhou uma horrenda Versão Estendida caça-níqueis que Lynch passou longe.
Nem sempre, porém, Evry acerta. Seu capítulo lidando com a pré-produção é o mais amplo e completo, com o dedicado à produção sendo econômico demais e o que fala da pós-produção dependendo demais de citações de terceiros, sem que ele consiga entrar a fundo nos problemas mais sérios e abrindo espaço para discussões sobre os bonequinhos, ops, figuras de ação, a adaptação em quadrinhos da Marvel Comics e outros aspectos menos essenciais e que estão ali para o autor poder dizer, com orgulho, que não deixou absolutamente nada de fora (e não deixou mesmo, só nem sempre se aprofundou como poderia ter se aprofundado, talvez escolhendo melhor seus alvos). Além disso, as páginas e mais páginas dedicadas à História Oral cansam um pouco sem conseguir acrescentar muito ao que já foi abordado.
Uma Obra-Prima em Desordem é, porém, para quem tem interesse no assunto, um livro de leitura gostosa e informativa – ainda que talvez muito maior do que devesse ser – que põe ordem no caos, que realmente consegue deixar o leitor com a impressão de que havia algo de especial na bagunça que foi a demasiadamente ambiciosa produção oitentista de Duna. Max Evry, portanto, cumpre com louvor (e com exagero, he, he, he) a tarefa que se propôs a cumprir e, no final da epopeia literária, consegue nos fazer olhar para o longa com outros olhos, mesmo que, muito provavelmente, não vá mudar a opinião de quem não gosta deste longa de Lynch, até porque nem mesmo Lynch gosta.
Duna, de David Lynch: Uma Obra-Prima em Desordem (A Masterpiece in Disarray: David Lynch’s Dune. An Oral History – EUA, 2023)
Autor: Max Evry
Editora: 1984 Publishing
Páginas: 560