- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios.
Tinha receio de que, depois de Irmandade Acima de Tudo, episódio que finalmente mostrou a que Duna: A Profecia veio, o foco exclusivo no presente da série fizesse com que a narrativa retrocedesse ao nível de Duas Lobas ou, Shai-Hulud me livre, de A Mão Oculta. Mas não, Nascido Duas Vezes felizmente pega o bastão entregue pelo passado e continua correndo com o mesmo vigor, construindo um episódio repleto de intrigas palacianas que até podem não ser do outro mundo – bem, tecnicamente são… -, mas que, no âmbito geral, fazem a história caminhar a passos largos para a frente.
Mas deixem-me contextualizar meu ponto acima de maneira bastante direta: a série continua sendo formada por “planos mirabolantes para Jardim de Infância”. Isso quer dizer, para além do óbvio que a expressão depreciativa quer indicar, que tudo o que vemos é muito distante da sutileza elegante de Frank Herbert e muito próximo da cavalice chinfrim de seu filho Brian Herbert que, com Kevin J. Anderson, escreveu o que pode ser mais facilmente classificável como fanfics tonalmente bem diferentes das obras centrais, transformando entrelinhas em linhas, contexto em texto. E é isso que Duna: A Profecia é em seu fundo e que eu duvido que deixe de ser em algum ponto, ou seja, uma abordagem facilmente digerível de todos os tropos narrativos que gravitam ao redor do tema “intrigas palacianas” que mencionei acima.
Mesmo assim, o episódio se segura bem por uma combinação de fatores importantes, um deles sendo um elenco que vem consistentemente entregando ótimas performances, essas sim bem mais comedidas do que o próprio roteiro, com Emily Watson e Olivia Williams destacando-se como as irmãs Harkonnen, mas com o leque sendo aberto para uma série de outros, inclusive Travis “Mesmo Papel Sempre” Fimmel como o misterioso Desmond Hart, Jodhi May com a “macbethiana” Imperatriz Natalya, Jade Anouka como a “Dançarina Facial” e Bene Gesserit Theodosia (mais sobre isso em um instante) e, agora, Edward Davis como o fraco, manipulável, mas ambicioso Harrow Harkonnen. Outro aspecto que vem surpreendendo é a direção de arte e os figurinos, que evidenciam trabalhos cuidadosos, monumentais e variados que são muito bem complementados por um CGI que amplifica e também cria ambientes muito discretamente.
Além disso, mesmo considerando o “be-a-bá da manipulação” que é o roteiro, há elementos narrativos que merecem destaque, como é a forma como os diversos núcleos são desenvolvidos e ao mesmo tempo costurados a partir de uma sequência relevante que acontece no “futuro”, no caso a reunião final do Landsraad no palácio imperial, em que as ações de Desmond Hart ajudado pela imperatriz dá rasteiras tanto na Madre Superiora quanto na filha traidora do imperador. Por outro lado, essa mesma sequência climática é, talvez, o único ponto de real mistério fora dos eventos que acontecem no seio da irmandade Bene Gesserit. O que quero dizer com isso é que tudo depende da verdadeira natureza e origem dos poderes de Hart e isso pode ser muito bom, mas também a ruína da série dependendo da forma como a questão for abordada, isso se ela for abordada nos próximos dois episódios.
Se não sabemos muita coisa concreta sobre Hart, aprendemos muito sobre Theodosia que guarda um segredo que ela mesmo não gosta sequer de lembrar, mas que Valya a obriga. O problema dessa revelação é o problema que pode existir com a revelação do que Hart é ou deixa de ser, pois tenho certeza que ninguém que não tenha lido os livros tem alguma ideia do que aconteceu ali, quando Theo aparece como Griffin para Valya. Confesso que até eu fiquei confuso e estranhei, até a ficha cair que o que eu estava vendo era só uma demonstração da habilidade especial da Bene Tleilax – ou Tleilaxu – que Theo é, uma ordem de humanos geneticamente alterados de forma a terem a capacidade de alterar seus corpos. Não sei até que ponto os próximos episódios entrarão na mitologia desses seres (será que teremos flashbacks sobre a origem deles?), pelo que não abordarei nada mais por aqui, mas basta dizer que é no mínimo curioso que Theo seja uma Dançarina Facial (apelido dos Tleilaxu com habilidade transmorfa) e que, ainda por cima, tenha sido acolhida pelas Bene Gesserit.
Por último, mas não menos importante, temos a linha narrativa que abre com vigor o episódio por meio do pesadelo coletivo não partilhado por apenas uma das noviças no planeta da irmandade. Diria que toda essa abordagem das Bene Gesserit em treinamento era algo que estava faltando em uma série que, em sua origem, seria chamada de Duna: Irmandade. Não que elas tenham sido esquecidas, pois Valya e Tula são extremamente importantes para a história, mas aquela sensação de um grupo maior com rostos e personalidades definidos não existia ainda para além de Lila e, agora, ganha alguns outros como Jen e Emeline, respectivamente a única não afetada pelo pesadelo e a mais afetada por ele. E isso sem contar com a mais do que esperada ressurreição de Lila que, agora, definitivamente compete com Desmond pelo título de “Nascido Duas Vezes” da profecia, com ambos conectados de alguma forma pelas máquinas pensantes, já que ainda creio que Aquele-Que-Se-Recusa-A-Tomar-Banho é fruto de algum controle vindo de I.A. pré-Jihad Butleriano.
Nascido Duas Vezes, portanto, usa o didatismo e a simplicidade das intrigas ao seu favor e faz a trama caminhar a passos largos, mas sem exatamente acenar para um encerramento de arco possível em apenas mais duas horas ou um pouco mais se transformarem o episódio final em um longa-metragem. Há peças demais no tabuleiro, com possibilidades infinitas de movimentações e sem um objetivo macro em vista para além da combinação de ambições concorrentes exibidas aqui. Fica a torcida para que a especiaria não pare de fluir…
Duna: A Profecia – 1X04: Nascido Duas Vezes (Dune: Prophecy – 1X04: Twice Born – EUA, 08 de dezembro de 2024)
Desenvolvimento: Diane Ademu-John, Alison Schapker
Direção: Richard J. Lewis
Roteiro: Kevin Lau, Suzanne Wrubel
Elenco: Emily Watson, Jessica Barden, Olivia Williams, Emma Canning, Jodhi May, Sarah-Sofie Boussnina, Chloe Lea, Chris Mason, Shalom Brune-Franklin, Mark Strong, Travis Fimmel, Jade Anouka, Edward Davis, Josh Heuston, Faoileann Cunningham, Aoife Hinds, Mark Addy, Barbara Marten
Duração: 63 min.