- Leiam, aqui, a crítica com spoilers.
My road leads into the desert.
– Atreides, Paul
A segunda adaptação cinematográfica de Duna, o clássico literário de Frank Herbert que é o capítulo inicial de um saga impressionante que inegavelmente merece ser lida, tem dois obstáculos a superar logo na largada, obstáculos esses que são externos ao longa dirigido e co-roteirizado por Denis Villeneuve. O primeiro deles é que, por um decisão que reputo equivocada do marketing da produtora, não há nenhuma indicação prévia facilmente acessível de que se trata, apenas, da primeira parte do primeiro livro da saga, algo que só é revelado quando o título completo do filme aparece na telona, Duna: Parte Um, o que pode ser encarado como um engodo. O segundo é a quase que inevitável sensação de familiaridade com praticamente tudo o que vemos transcorrer no longa, com aquela quase literal sensação de “já vi isso antes”.
Esses fatores, porém, não deveriam de forma alguma afetar a apreciação do épico cinematográfico como apresentado, pois eles em nada se relacionam com a obra em si. Afinal, o livro de Herbert é complexo e rico, exigindo a apresentação de um universo completamente novo no futuro distante da Humanidade em que a estrutura é essencialmente feudal, com um Império controlando, por intermédio de casas (ou dinastias) fieis a ele, todos os planetas da galáxia e com um deles, Arrakis – mais conhecido como Duna – sendo a única fonte da cobiçada e essencial especiaria, substância que, dentre outras várias funções, permite que navegadores saturados dela façam viagens interplanetárias. A condensação de tudo em um longa apenas é perfeitamente possível, claro, como David Lynch fez em sua versão de 1984, mas a perda também é muito grande, com apenas uma infelizmente pouco lembrada minissérie de quase quatro horas e meia tendo chegado próximo da riqueza original. O importante é saber se Villeneuve escolheu o ponto certo para fazer a quebra e tenho para mim que sim, ele foi cirúrgico no momento, já que é o ponto de virada em que o caminho de Paul Atreides (Timothée Chalamet), filho do Duque Leto Atreides (Oscar Isaac) e de Lady Jessica (Rebecca Ferguson) é definitivamente traçado.
Sobre a familiaridade com a ambientação (planeta desértico), temática (um messias que vem para libertar um povo da opressão), habilidades especiais (presciência, manipulação de mentes) e outros elementos, a lógica é literalmente inversa aqui, já que Duna, o romance, foi lançado em 1965 e foi ele, uma das obras literárias de ficção científicas mais vendidas na História, que ajudou a estabelecer aquilo que hoje temos como “comum” e que podemos ver em obras como as da franquia Star Wars ou Nausicaä do Vale do Vento. O que Villeneuve colocou nas telonas até pode ser acusado de ser “muito próximo ao material fonte”, mas é essencial entendermos que foi o material fonte que marcou o sci-fi a partir de seu lançamento e não o contrário. Então sim, Duna será muito familiar para muita gente que sequer passou perto dos livros, mas isso não é sem querer e nem é algo que deva ser visto negativamente, muito ao contrário, diria.
Ultrapassados esses pontos introdutórios, deixe-me, agora, abordar o que realmente há de potencialmente negativo na adaptação. O que imediatamente me vem à cabeça é o quanto o elenco estelar do filme é quase que exclusivamente composto do que poderíamos muito bem categorizar como figurantes de luxo. Não falo aqui, claro, de Timothée Chalamet, que é onipresente, nem de Rebecca Ferguson que é quase tão importante quando o jovem ator. Não falo sequer de Zendaya, pois, apesar de sua personagem, a fremen Chani, somente aparecer fora das visões prescientes de Paul nos minutos finais, ela está costurada de maneira indelével na tecitura narrativa. Mas tanto os membros da Casa Atreides, interpretados por Oscar Isaac, Josh Brolin, Jason Momoa e Stephen McKinley Henderson, que passam a controlar Arrakis por ordem imperial, quanto os membros da Casa Harkonnen, vividos por Stellan Skarsgård, Dave Bautista e David Dastmalchian, ostensivamente os vilões principais e ex-gestores do planeta, são trabalhados exclusivamente como um elaborado pano de fundo para a história central, que é a jornada pessoal de amadurecimento de Paul Atreides em direção ao seu destino.
Mas esse aspecto negativo é, também, de maneira até incongruente, uma das forças do longa e que mostra coragem da produção. De um lado, temos uma série de personagens que não ganham desenvolvimento suficiente para que nos importemos de verdade com seus destinos, mas, de outro, eles funcionam, em conjunto, como o organismo vivo que pulsa ao redor de Paul e Jessica, permitindo que esses dois tenham os holofotes apontados para si, criando toda a infraestrutura necessária para que eles cresçam e para que, através deles, vejamos esse fascinante mundo novo. Quando Duna acaba e Chani, olhando para mãe e filho (e, de soslaio, também para nós), diz, com todas as letras, que “isso é apenas o começo”, percebemos que Villeneuve cumpriu sua missão de nos apresentar, construir e desenvolver os três alicerces principais do épico expansivo que a obra de Herbert exigia, algo que talvez o desvio de foco para o restante do elenco não tornasse possível. O diretor sacrificou cuidadosamente diversos elementos e personagens – pode até parecer que a adaptação é exageradamente fiel, mas a grande verdade é que o trabalho de adaptação foi extenso, com muita coisa tendo sido deixada de fora – para poder se concentrar no que era verdadeiramente importante.
Curiosamente, porém, especialmente considerando a duração do filme e o que vem pela frente, algumas exclusões de personagens surpreendem. A Casa Corrino, do Imperador Shaddam IV, não se faz presente a não ser por emissários. Os navegadores, que pilotam as naves em viagens interplanetárias, não são vistos. Feyd Rautha, outro sobrinho do Barão Vladimir Harkonnen (Skarsgård), sequer é mencionado. Os gigantescos vermes da areia, que são o verdadeiro terror daqueles que querem extrair especiaria, mas, por outro lado, são deuses para o povo nativo fremen, são apenas parcialmente vistos em uma decisão muito interessante de Villeneuve, certamente para nos deixar com água na boca. Essas ausências que, claro, só serão sentidas mesmo por quem leu o livro, são trocadas por um pouco de texto expositivo necessário, notadamente por intermédio dos estudos do protagonista com gravadores e auxílios visuais e, sobretudo, por contemplação, com Paul lenta, mas certeiramente compreendendo seu caminho e o que precisa fazer, com a cadência dos eventos determinados pela decupagem cuidadosa de Villeneuve jamais permitindo as chamadas “barrigas” ou aquele sentimento de enrolação.
Alguns dos elementos que ajudam na passagem temporal – que é incrivelmente rápida para um filme dessa duração, confesso – são os inspirados design de produção de Patrice Vermette, direção de arte de Tom Brown e figurinos de Bob Morgan e Jacqueline West. Há muito tempo não via um sci-fi dessa envergadura com aquela perfeita impressão de “espaço vivido”, ou seja, de elementos cênicos extraordinários, fora desse mundo, mas que carregam história, que carregam uso e que carregam memória ancestral. Desde os tópteros dos Atreides que lembram libélulas, passando pelos trajestiladores com diversos “níveis” de utilização, do preto novinho de quando os vemos pela primeira vez em Paul e Leto até o marrom velho desgastado de Duncan Idaho (Momoa) em Arrakis e dos fremen ao final e chegando aos cenários gigantescos que fundem computação gráfica com cenários práticos, uma assinatura já clássica de Villeneuve, tudo funciona para permitir nossa imersão completa até mesmo em planetas que são visitados muito brevemente como Giedi Prime, lar dos Harkonnens, ou Salusa Secundus, sede do Império.
Chalamet, que já provou ter razoável latitude dramática, tem uma adaptação contida aqui que por vezes lembra os personagens taciturnos de seu colega menos inspirado Ryan Gosling. A grande diferença é que o Paul Atreides fechado em si mesmo, mas ao mesmo tempo em sintonia com o mundo místico e real ao seu redor é uma exigência do personagem e o ator, ao fazer menos, consegue criar uma intensidade digníssima ao personagem, sem, porém, deixar de sutilmente desenvolvê-lo de jovem impulsivo em seu treino com Gurney Halleck (Brolin), passando por uma mente em turbilhão depois da sinistra visita da Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam (Charlotte Rampling) e chegando ao que ele se torna ao final, marcadamente diferente do que ele é ainda em Caladan, seu planeta natal. Rebecca Ferguson, como a mãe de Paul, é outra força da natureza, com a atriz abordando sua personagem como uma guerreira protetora de sua família, capaz de absolutamente qualquer coisa por seu filho. Há uma conexão excelente entre ela e Chalamet, com a atriz por diversas vezes conseguindo suplantar o jovem ator, mesmo que seu papel, pelo menos em relação a ele, seja secundário. Zendaya, como eu disse, tem participação breve no agregado, mas Villeneuve sabe o poder dramático da jovem e faz cada frame com ela contar muito fortemente para a condução da narrativa ao ponto de ela parecer muito mais presente na história do que ela realmente é se formos olhar a minutagem da atriz.
Mas eu estaria sendo leviano se não falasse da trilha sonora de Hans Zimmer aqui, já que é outro elemento essencial para que o longa funcione nos mais diversos níves. Nunca achei o compositor realmente especial e nunca entendi tamanha adoração que muitos têm por ele, mas desde provavelmente A Origem que eu não vejo algo tão sensacional saindo da batuta dele. Como é comum em seus trabalhos, não se trata de uma partitura agradável aos ouvidos se apreciada fora do filme – pelo menos não para mim -, mas, dentro da estrutura proposta, o compositor foi praticamente capaz de sonoramente construir um planeta. A chegada dos Atreides em Arrakis ao som (diegético, aliás!) de gaitas de fole foi absolutamente emocionante e elas se tornam um não tão discreto leit motif dali em diante para as sequências de ação envolvendo essa dinastia. No lado puramente desértico da história, notadamente na primeira vez que temos um vislumbre de Shai-Hulud, a percussão fortíssima da orquestra amplifica e quase que emula a montanha de areia trepidando em antecipação à bocarra do monstro, em um daqueles momentos de notas musicais se transformando na criatura que vimos poucas vezes antes, como, claro, na incomparável trilha de John Williams para Tubarão e que se transmuta sonoramente no “poder do deserto” que Leto tanto deseja colher.
Denis Villeneuve é um dos grandes diretores da geração atual e ele vem se mostrando cada vez mais adepto do mantra Bene Gesserit que diz que o medo mata a mente, que é a pequena morte que leva à aniquilação, mesmo amargando fracassos de bilheteria como injustamente aconteceu com seu Blade Runner 2049. Sua aposta com Duna foi arriscada, pois, apesar de ser um livro conhecido, é uma obra longa, hermética e que relativamente pouca gente realmente leu e a divisão em dois filmes é outro elemento que só traz potenciais complicações para o futuro – espero! – da franquia cinematográfica. No entanto, se havia um nome para capitanear essa empreitada difícil, era o do canadense e o resultado a que ele chegou, considerando todas as escolhas que fez, especialmente a ousadia de reduzir o foco do gigantesco épico à jornada de um jovem tentando achar seu caminho, não é menos do que impressionante, com chances de o conjunto final, se o segundo filme sair mesmo (que Shai-Hulud ilumine o caminho!), ser superior às partes separadas.
Duna (Dune: Part One – EUA/Canadá, 2021)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Jon Spaihts, Denis Villeneuve, Eric Roth (baseado em romance de Frank Herbert)
Elenco: Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac, Josh Brolin, Stellan Skarsgård, Dave Bautista, Stephen McKinley Henderson, Zendaya, David Dastmalchian, Chang Chen, Sharon Duncan-Brewster, Charlotte Rampling, Jason Momoa, Javier Bardem, Babs Olusanmokun, Benjamin Clementine
Duração: 155 min.