“Você é um elefante milagroso, Dumbo.”
O personagem que é vivido por Michael Keaton em Dumbo, V. A Vandemere, é um ser construído para os negócios, enxergando no icônico personagem e suas icônicas orelhas uma coisa que chama de mística. É isso o que o elefante voador, que ganha uma nova versão no cinema, significa para as pessoas quando visto em um estado puro. Mas esse personagem, um antagonista na verdade, não vê a mística por si só, porém, oportunidades. Quer domar essa aura fantasiosa, transformando-a em dinheiro e em investimento. Dumbo representa uma magia incontrolável, enquanto que para os homens, sendo domado por chicotes, representa algo a ser controlado, para tornar-se parte de um espetáculo. Pois será que algum circo é grandioso o suficiente para Dumbo?
Tim Burton, mais uma vez em sua carreira, quer pensar o espaço do que é “esquisito” em meio a um mundo pretensamente normal. E o seu longa-metragem argumentará essa questão, sempre colocando o bebê elefante em meio a situações em que qualquer traço de liberdade, qualquer traço de uma autonomia, torna-se sinônimo de descontrole, ou seja, problemas para os demais personagens. A mãe de Jumbo Júnior – o nome original de Dumbo, até ser zombado pelo público e renomeado de Dumbo -, a Sra. Jumbo, é vista como uma aberração após tentar proteger o seu garoto, ridicularizado por conta de suas orelhas gigantes. Como todos já sabem, mãe é separada de filho, que terá que expor sua magia – porém, só dentro de uma lona – para reavê-la novamente.
O controle é sempre um mal, portanto. Os animais precisam ser submissos. Como as orelhas não são comuns, são peculiares, também não são agradáveis, chocantes aos ordinários. O roteiro, então, revisita passagens da clássica obra de 1941, chegando até mesmo em easter eggs graciosos – por exemplo, o ratinho Timóteo, os elefantes rosas e a cegonha -, mas, após os trinta primeiros minutos, enxerta mais enredo para esse conto conhecidíssimo. Os efeitos visuais carregam os dramas iniciais, caracterizando muito bem o pequeno elefante, sempre com feições marcantes, ora fofas e ora entristecidas. Burton não permite que a magia seja retirada de Dumbo, que permanece o centro das atenções – embora outros nomes surjam com a extensão na duração.
Mesmo assim, a quantidade de situações novas – apesar de teoricamente serem bem-vindas, pois o original sofria com o orçamento minimizado -, estufam o longa com material que não acrescenta muita coisa à conversa que Burton quer criar entre o mundano e o mágico, entre o homem e o animal, o ordinário e o extraordinário. Enquanto essa premissa, o primeiro ato do remake – a separação e o reencontro através da descoberto do voo -, era justamente toda a narrativa do longa original, uma animação de meros sessenta minutos, a versão de Burton abre mais espaço para contrapor o elefante com os personagens humanos e o caráter ordinário que se encontra em meio a eles. Quando Dumbo enfim voar pela primeiríssima vez, personagens externos surgirão em cena.
Comandado por Colin Farrell, o núcleo humano, entretanto, não convence, apesar de expandir o espaço dramático – muita melancolia – a outras temáticas inerentes a essa narrativa, como a questão da fé em si mesmo. As crianças, pouco naturais quando vistas em termos de drama, não estão bem. O texto é culpado nesse sentido. Dumbo permanece sendo uma virtude, assim como o maniqueísmo que Burton insere no filme. Do que vale a magia domesticada? Torna-se truque. Uma ironia está presente envolvendo Alan Arkin. Já Keaton está excelente. O seu personagem é patético. E isso é interessante em vista de como Vandemere vê a magia, de um modo cético. Em como ele vê até Colette (Eva Green), trapezista vivida com charme, mas um tanto rasa. Danny DeVito é quem vive um personagem mais interessante e coeso, metamorfoseando-se na narrativa.
Uma pena que Tim Burton não aproveite o potencial que reside nesses personagens. Termina por dar mais do seu espírito ao espetáculo da magia sem correntes e que, para ser sincero, verdadeiramente captura com destreza. O cineasta apresenta várias sequências imagéticas, que pegam a iconografia clássica – os elefantes rosas, por exemplo – e a engrandece ainda mais. Uma outra questão que Tim Burton aborda é a domesticação do inumano. Os animais, nessa ótica burtoniana, são vistos como seres especiais, justamente o que o contradiz ao não dar margem para que nenhuma outra espécie ganhe proeminência. Timóteo e o macaco do primeiro ato são esquecidos. Já os cavalos, por outro lado, poderiam ser explorados especialmente por serem parte intrínseca da premissa que envolve o personagem de Farrell, Holt, combatente na Primeira Guerra.
Mesmo que possua consideráveis contradições em execução na sua estrutura, Dumbo é um projeto que possui um espaço e um significado na carreira cinematográfica de Tim Burton. Mas como parte dessa sua nova fase, mais harmônica e otimista que a de antigamente – vide Edward Mãos de Tesoura. O cineasta americano se interessa por personagens esquisitos, personagens que são vistos como anormalidades dentro de uma sociedade, ora aceitando que serão rejeitados. Um defeito ou uma virtude ter orelhas tão enormes que são capazes de fazer um elefante voar? Eis que Tim Burton nos apresenta ao extraordinário e estranho mundo de Dumbo, uma lenda sem amarras, vivendo sua própria natureza, sua própria peculiaridade, suas grandes orelhas, sem precisar se preocupar com o planeta dos homens, nada maravilhoso e fantástico. Voe Dumbo, voe!
Dumbo – EUA, 2019
Direção: Tim Burton
Roteiro: Ehren Kruger, Helen Aberson, Harold Pearl
Elenco: Colin Farrell, Michael Keaton, Danny DeVito, Eva Green, Finley Hobbins, Nico Parker, Alan Arkin, Sandy Martin, Joseph Gatt, Deobia Oparei, Kamil Lemieszewski
Duração: 112 min.