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Crítica | Druuna: Morbus Gravis

por Luiz Santiago
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ATENÇÃO: este é um quadrinho +18!
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O grande artista veneziano Paolo Eleuteri Serpieri teve uma formação e um início de carreira bem longe dos quadrinhos. Ele estudou na Academia de Belas Artes de Roma, sob as asas de Renato Guttuso, político comunista e ícone da pintura neorrealista italiana. Ele também estudou arquitetura e escultura a fim de poder criar contextos realistas para aquilo que era o seu grande foco nas artes plásticas (a anatomia) e começou sua carreira como pintor aos 22 anos. Sua formação e atividade acadêmicas, no entanto, não o afastaram do gosto que tinha pela cultura pop ou marginalizada, como fotografias e filmes eróticos, quadrinhos e sua verdadeira grande paixão: filmes de faroeste, com um olhar bastante carinhoso para a versão italiana do gênero, o western spaghetti.

Demoraria ainda nove anos, desde o início de sua atividade como pintor e depois professor, para que ele chegasse os quadrinhos, via uma revista italiana chamada Lanciostory. Era o início de uma carreira que colocava o artista desenhando para algo fora do ambiente acadêmico e para um gênero que ele tinha grande apreço. Os anos do autor antes da criação de Druuna, em 1985, contaram com sua participação em diversas publicações, como SkorpioL’EternautaOrient Express e Il Fumetto, além de sua passagem pela Larousse em três volumes da série Descobrir a Bíblia. Embora tivesse conhecimento da arte sequencial por ser leitor, Serpieri teve nestes primeiros trabalhos uma espécie de “rápida oficina”, onde criou e aprimorou o seu estilo de diagramar histórias (embora aqui Morbus Gravis ele ainda traga pequenas rusgas na dinâmica de continuidade) e se habituou a desenhar e pintar para o formato.

O impulso de criação, no entanto, levou o autor para um caminho onde ele mesmo pudesse definir as regras e as bases artísticas de seu Universo em quadrinhos. O pensamento era: se ele pudesse gastar menos tempo fazendo a pesquisa histórica para tramas de faroeste e mais tempo criando outras coisas, o resultado poderia ser mais interessante. E foi aí que ele juntou uma infinidade de influências cinematográficas, literárias e da nona arte (num pacote artístico que ia de Barbarella a Duna, passando por MoebiusFederico Fellini) que o autor criou uma mulher muito sensual, de aparência indígena e vivendo em um Universo doente, sujo, violento. Marcado pela cena underground americana e explorando uma concepção muito livre de erotismo, o autor imaginou um futuro distante da humanidade onde a destruição da natureza e a dominação química trouxe uma infecção incontrolável, tornando parte da humanidade em bichos mutantes. É neste cenário que encontramos Druuna no início de Morbus Gravis, lendo livros antigos e pensando que tudo aquilo era uma perigosa loucura. Assim diziam os Sacerdotes.

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Druuna chama a atenção por tudo o que é e representa. A imbatível arte realista de Serpieri destaca efusivamente as formas femininas, e o sexo, nas mais diversas formas e indicações, está sempre presente no Universo dessa personagem. Eu disse antes que o autor sempre teve uma visão muito livre do erotismo e essa liberdade se dá claramente na concepção de Druuna, que traz a representação da pureza e da bondade em um mundo que é totalmente corrompido, nos mais diferentes sentidos — classificação que vale, inclusive, para as pessoas/criaturas que lhes são simpáticas. Há sempre um fator de agressividade, violência, sujeira, desejo invasivo em torno de Druuna e a discussão sobre isso é imediatamente interessante, porque se alguém tentar justificar essa violência externa com a frase “mas é claro que todo mundo quer atacá-la, ela é linda, ela é irresistível, ela está o tempo inteiro praticamente nua!” então a gente já tem um padrão moral-sociológico muitíssimo relevante em nossos dias para colocar na mesa e entender parte da grande sacada do autor.

Druuna assume, sem querer, um certo patamar de messianismo e de rápida iluminação nessa sua estreia. Se a gente comparar a sua penetração nos bastidores da sociedade e a chegada de outros personagens sci-fi dos quadrinhos europeus, naquela década, a um “cenário sujo e prestes a entrar em outro colapso” (como John Difool, em O Incal Negro ou Alcide Nikopol em A Feira dos Imortais), perceberemos que a intenção de Serpieri está mais focada nas raízes da humanidade e em sua remota possibilidade de redenção, mesmo que ele não seja nada otimista frente à nossa espécie e suas mutações. Druuna acaba sendo a representação do que sobrou das coisas boas do passado e isso pode parecer confuso para os personagens desse Universo (e até do nosso, convenhamos) porque ela, vejam só que “absurdo”, gosta de sexo. Há um diálogo interessante da personagem com um médico, em certo ponto da narrativa, em que ela deixa claro que gosta de sexo e gosta de escolher as pessoas com quem faz, mesmo que isso tenha uma intenção inicialmente alheia ao prazer.

Desde a sua primeira trama sci-fi, a semente para Druuna (uma pequena história chamada Forse…, publicada na revista Orient Express, em agosto de 1982), Serpieri procurou colocar a mutação, a podridão e tudo aquilo que tem de ruim na humanidade — aliado ao comportamento instintivo, sempre viciado, sempre querendo possuir o que não pode — versus a vida de pessoas que só querem paz. O enredo cava muito mais fundo e a gente tem um contexto de sociedade em crise, à beira da extinção e cuja metade não-contaminada parece ser tão monstruosa como aquela já dominada pelo vírus. Do desejo reprimido ao estupro, Morbus Gravis nos mostra o começo espetacular de uma jornada cuja personagem nasceu e cresceu num mundo que a enganou e dominou. O roteiro de Serpieri funciona bem na relação entre os indivíduos desse mundo podre e o forte erotismo que permeia a obra (poucas exceções às frases bobas e reações de Druuna frente ao perigo) e o resultado final, com uma inesperada revelação digna das grandes ficções científicas, é simplesmente soberbo.

Druuna: Morbus Gravis (França, 1985)
Editora original: Dargaud (1986)
No Brasil: Heavy Metal (1996) / Pipoca e Nanquim (2019)
Roteiro: Paolo Eleuteri Serpieri
Arte: Paolo Eleuteri Serpieri
62 páginas

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