- Confira aqui, a versão sem spoilers.
Em 2019, quando Martin Scorsese disse para a revista Empire que os filmes da Marvel Studios “não são cinema, mas sim um parque de diversões”, ele visava salientar a artificialidade temporal das emoções que esses cinemas de heróis proporcionam ao público. De fato, a construção organizada e padronizada da estrutura estética da franquia em universo compartilhado (a famosa “fórmula Marvel”) cada vez mais resumia os novos projetos do MCU às suas “atrações”, alienando a expectativa do público em cima delas e não exatamente dos filmes em si. O conteúdo cinematográfico das películas, a forma como aquela narrativa específica seria contada, não era mais relevante do que qual novo personagem seria introduzido numa ponta, ou como essa história se conecta com as outras para gerar a próxima e maior história, de qual quadrinho está referenciando e qual a próxima saga dos quadrinhos que pode ser adaptada posteriormente conforme as participações especiais ocorridas.
O bom é que a Marvel, depois daquela polêmica, pareceu ficar mais ciente da negatividade trazida por essa mentalidade que estava criando para os “fãs”, bem como identificou o desgaste natural de sua fórmula para os telespectadores que ficavam mais críticos a cada novo filme lançado. No entanto, nessa altura do campeonato, a empresa também estava ciente de que o seu apelo mercadológico com o grande público era praticamente irreversível. Não importa o quão desconhecido seja o personagem protagonista, se vai ser em filme, série ou animação, todo novo produto com o selo canônico da Marvel será assistido, comentado, não só por aquele consumidor geek.
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O surgimento de uma Marvel mais autoral
Nessa sua denominada “Fase 4”, a Marvel possibilitou um cenário mais aberto a novos experimentos, providenciando um afrouxamento gradativo do controle criativo “certinho” das suas obras, dando para os diretores um grau a mais de liberdade nas decisões do projeto e não apenas fazendo-os encaixar com a proposta que queriam para a identidade do personagem no universo. Foi o caso de Taika Watiti em Thor Ragnarok, que possuía semelhanças evidentes com o estilo de James Gunn e assim, para transformar o Thor (Chris Hemsworth) num piadista, porque sua face séria e shakespeariana não agradou, seguiu de cabo a rabo a identidade dada por Gunn ao universo cósmico da Marvel em Guardiões da Galáxia. Inclusive, esse caso de liberdade dada ao Gunn só aconteceu por se tratar de uma primeira aposta com heróis totalmente desconhecidos, mas ainda assim, seguia um princípio formulaico de personagens bem-humorados por uma dinâmica de equipe disfuncional que deu certo em Os Vingadores.
A mudança deste paradigma autoral só começou realmente com Ryan Coogler em Pantera Negra e Cate Shortland em Viúva Negra, onde os diretores tiveram liberdade de leitura própria para os personagens que estavam trabalhando. No primeiro caso, Coogler imprimiu seu conhecimento na temática racial para aprofundar substancialmente a construção política de Wakanda e seus conflitos. No segundo, Shortland interpretaria o histórico de secundarismo da personagem na franquia (a ponto de só ganhar um filme solo depois de morta) para ligá-la a uma trama de espionagem com fortes debates sobre o escanteamento histórico do feminicídio. Ainda que em ambos os filmes a forma seguisse o estilo visual dos diretores, foi somente em Eternos, de Chloe Zhao, que a Marvel passou a explicitamente a dar mais liberdade também na parte estética – algo refletido em algumas séries de streaming, como Loki e Cavaleiro da Lua, cada uma com uma identidade visual praticamente única dentro da Marvel.
Goste do filme ou não, cada plano de Eternos respira a câmera característica da diretora recém vencedora do Oscar. Inclusive, foi a primeira vez na Marvel que o nome de um diretor (a) ficou estampado em material promocional antes do lançamento. Uma exceção que poderia ser justificada no lobby da sua recente estatueta, mas que fundamentalmente foi destacada por conta da sua real assinatura no filme. Quando o mesmo aconteceu com Sam Raimi nos trailers de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, tive esperanças de uma liberdade semelhante à que foi dada a Zhao em Eternos. Realmente estava certo, mas não esperava que Raimi possuísse tamanho controle da Marvel como possuiu. O peso do seu nome como lenda do terror (criador da franquia Evil Dead) e pioneiro transformador do gênero de super-herói (a trilogia inicial do Homem-Aranha, protagonizada por Tobey Maguire), fez com que o Presidente da Marvel Studios, Kevin Feige, simplesmente lhe desse “carta branca” para o projeto.
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A Liberdade de Sam Raimi
Mesmo num filme hipotético que o Sam Raimi não tivesse tanta liberdade porque tinha que fornecer as milhões de participações especiais de outras “variantes” de personagens já vistos no cinema, cobradas e teorizadas pelo público nerd – algo que já adianto, não ocorre – considerava sua escolha para a direção, como a única possível para um filme como Multiverso da Loucura. Não existe cineasta no planeta que seja tão exímio controlador de narrativas caóticas como Sam Raimi, e que tenha experiência com elas no gênero de heróis, sejam elas propositalmente caóticas ou não. É só ver os seus primeiros filmes: A comédia de erros Dois Heróis Bem Trapalhões e a própria trilogia Evil Dead. Havia neles uma bagunça proposital de vários elementos arbitrários acontecendo simultaneamente, mas sempre controladas por um senso charmoso de entretenimento eloquente. É só revermos, Homem-Aranha 3. Amplamente questionado pelos seus vários vilões e inchaços narrativos, mas que é adorado por muitos (inclusive, por mim) até hoje, porque as intervenções de estúdio querendo enfiar mais coisa no filme não prejudicaram o efeito emocional proposto como desfecho da história: o egoísmo do herói e a cegueira por vingança.
Por sinal, Raimi resgata essa ideia da quebra do egoísmo para ser o cerne dessa continuação, ressignificando a personalidade “Tony Starkiana” estipulada no primeiro filme para Stephen Strange/Dr. Estranho (Benedict Cumberbatch) – na época, ele foi mais um personagem piadista e sarcástico introduzido na Marvel –, além de conectá-la à jornada “vilanesca” de Wanda/Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) que busca descobrir alguma realidade em que seja possível estar junto dos seus “filhos”. No entanto, Raimi não depende do que foi introduzido em Doutor Estranho ou Wandavision para ter base para o desenvolvimento dos arcos dramáticos dos personagens. O cineasta busca legitimar o conteúdo na obra de maneira isolada, re-estabelecendo agilmente as bases e premissas principais de cada pilar para desenvolvê-las substancialmente na mise-en-scène, sintonizada ao ritmo de urgência pedido pelo exercício do gênero.
Por isso o roteiro de Michael Waldron utiliza o didatismo explicitamente para enxugar e quase que pular as contextualizações e/ou conexões “necessárias” com outros filmes, fornecendo um cenário ideal para Raimi poder investir na experiência sensorial, numa pluralidade de estímulos visuais genuínos surgidos a cada nova cena. É o sentimento extasiante buscado por cada imagem em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura que faltava para Scorsese considerar a Marvel como “cinema”. Raimi investe completamente no teor cinematográfico dos planos, dirigindo a fita numa frequência ininterrupta, com uma vibração sufocante do início ao fim, misturando repertórios adquiridos nos dois gêneros que domina de maneira extremamente criativa nas escolhas de angulações e enquadramentos de câmera.
Ele brinca constantemente com trocas dinâmicas de zooms (a câmera que entra no olho dos personagens e retorna com a velocidade do reflexo para uma nova ação), distorções de planos holandeses (aquele afunilamento na cena em Kamar-Taj para dar uma energia claustrofóbica ao templo), inserções desnorteantes de câmera subjetiva (aquela cena igualzinha em Evil Dead, acompanhando a perspectiva em “primeira pessoa” do feitiço de Wanda), manipulações de texturas e iluminação (a viagem saltando entre os multiversos; a fotografia novaiorquina vívida, totalmente diferente da Nova York gourmetizada e inócua em outros filmes do MCU), etc.
É um show impressionante de decupagem, ainda mais por conseguir, dentro do cinema de herói com classificação indicativa livre, imprimir um verdadeiro filme de terror, variando características entre diferentes subgêneros e sendo surpreendentemente violento e visceral em todas elas. Wanda funciona como uma espécie de monstro/assassino slasher implacável, perseguindo o Dr. Estranho e América Chavez (Xochitl Gomez) – mais do que um macguffin, uma final girl – durante a história de maneira onipresente e onisciente. Seus poderes de feitiçaria trazem uma utilização mais psíquica e remetente a Carrie, a Estranha, por vezes, quase transformando-a numa entidade demoníaca, dando bons jump scares com mudança para uma face desfigurada, atravessando os portais da dimensão espelhada com contorcionismo de body horror, possuindo suas versões de outros universos como se fosse um espírito.
São várias as sequências surpreendentes explorando esse horror através da sobrenaturalidade instituída ao universo místico da Marvel, de uma maneira que jamais imaginaria ser possível dentro do estúdio. Lembremos que o primeiro Doutor Estranho também “tinha” essa proposta de terror no papel, mas, na prática, ela foi praticamente inexistente para Scott Derrickson, o que só confirma como houve realmente uma verdadeira liberdade dada para Raimi neste filme. Diria que ele vai além do limite do que se podia ser mostrado dentro das limitações etárias, utilizando inteligentemente o vermelho das magias da Wanda para disfarçar e, ao mesmo tempo, destacar a sanguinolência das cenas, além de providencialmente usar seu humor cartunesco característico para quebrar o tom amedrontador e sombrio da narrativa para uma dimensão divertida ou mesmo puramente cômica.
É fascinante sua versatilidade em transitar por piadas bobas facilmente encaixáveis dentro da “fórmula Marvel” com outras depreciativas, humorizando a inevitabilidade da tragédia – algo muito visto na trilogia do Homem-Aranha, quando era engraçado ver como as coisas dando errado na vida de Peter Parker –, sem perder um pingo da atmosfera emergencial impressa pela ameaça constante de Wanda. Lembra o que foi feito com o Thanos (Josh Brolin) em Guerra Infinita, mas com um desenvolvimento de antagonismo alegoricamente mais rico ao ser espelhado diretamente na jornada de um protagonista fixo.
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Um Multiverso íntimo e “sem services”
Tanto o Doutor Estranho, quanto Wanda são seres superpoderosos, egoístas e “infelizes” com a realidade de seu universo (Terra-616). A intervenção do multiverso nesse contexto funciona alegoricamente como um “sonho” que é possível de ser alcançado, seja temporariamente através do domínio de feitiços profanos do livro Darkhold, seja definitivamente com controle do multiverso através dos poderes de América Chavez. Não coincidentemente, a alegoria do sonho é colocada de forma literal no roteiro, ao estabelecer a premissa de que todo sonho faz parte de uma realidade de outro universo.
Tal premissa é o que Raimi utiliza para o arco de sua Wanda escapar da dependência contínua do que foi feito em Wandavision. Claro, para o telespectador que assistiu à série, pelo fator natural do complemento que oferece, a assimilação acerca obsessão da personagem é imediata, mas é perceptível na dramatização posterior feita em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura o quanto Wandavision trabalhou simploriamente esse arco, como uma mera justificativa de “origem” para o conceito da Feiticeira Escarlate. Tanto que é recapitulado na cena do seu primeiro encontro com Strange e serve perfeitamente para aqueles que não assistiram à série como uma nova apresentação da personagem com sua nova face surpreendentemente vilanesca, já que nem a sua origem de “vilã” o seriado teve coragem de cravar.
Funciona isoladamente porque essa nova consolidação motivacional da personagem é mais direcionada ao drama tematicamente universal da maternidade do que exatamente um drama puxando o histórico de traumas que passou em outros filmes. Eles são mencionados. Quem assistiu vai pegar. Vai trazê-los para a conta. Mas quem não, vai sentir o peso de uma bruxa que sonhava em ser mãe e foi impedida de ser, somente nessa realidade, nesse universo. Assim como é possível não ver o primeiro Doutor Estranho, e compreender o quanto Strange ama Christine Palmer (Rachel McAdams) – o amor que não deu certo é outra temática universal facilmente relacionável ao público –, como ele é profundamente incomodado por não ter conseguido lidar com as responsabilidades do herói em equilíbrio com o compromisso amoroso.
Antes da cena que ele visita o casamento de Christine em que fica claro sua frustração e o “sonho” recorrente de estar ao lado da amada, o roteiro estabelece muito bem naquela primeira sequência de combate a uma das criaturas enviadas por Wanda do Darkhold, o complexo “Tony Starkiano” do personagem: de sempre querer o controle das situações e decisões importantes, a soberba com tom sarcástico de ser o “cara” e resolver todos os problemas sozinho. Mesmo que atualmente no universo o título de “Mago Supremo” pertença a Wong (Benedict Wong), Strange ainda age como se fosse dele. Por isso que em todos universos/realidades, de algum modo, ele se corrompe no próprio egoísmo, potencializado pelo Darkhold (aquele Doutor Estranho do episódio quatro de What If…, o Doutor Estranho do universo dos Illuminati, o Doutor Estranho “Ciclope” enfrentado próximo do clímax, são todos exemplos deste fado do personagem) igualmente ao que está acontecendo com essa versão de Wanda.
As versões do Doutor Estranho e Wanda do 616, portanto, são espelhos entre si, numa inversão dos fins que normalmente são destinados ao multiverso. Toda a lógica impaciente da narrativa serve para o filme nunca perder o foco do que importa: a exploração mental desses personagens e os dilemas que carregam com seus destinos espelhados. Até a utilização dos “fanservices” são pensados e encaixados organicamente como complementos dessa jornada psicológica encenada dentro do exercício de gênero. Doutor Estranho no Multiverso da Loucura renega ser um passeio referencial gratuito entre multiversos, trazendo somente os cameos dos Illuminati como um artifício de trama essencial para explicar algumas regras do multiverso e para serem vítimas poderosas que a Feiticeira “Escarslasher” trucida no caminho, exemplificando o quanto ela é extremamente poderosa e perigosa
Honestamente, não fosse o fancast de John Krasinski como Reed Richards que marvete tanto encheu o saco para acontecer (não minto, adoro essa ideia, ainda mais se Krasinski assumir com liberdade o filme do Quarteto Fantástico, agora que Jon Watts foi demitido) e o retorno de Patrick Stewart como Charles Xavier, apresentados exatamente com aquela “pausa” para os aplausos do público, nem consideraria essa sequência como um fanservice mesmo, principalmente levando em conta a maneira extremamente gráfica como os personagens morrem. É uma rasteira na expectativa dos “fãs” que esperavam mimos e tem o pirulito tirado da boca, uma mais satisfatória que a outra. A boca do Raio Negro (Anson Mount) daquela série fiasco dos Inumanos sendo costurada o fazendo explodir por dentro. A Capitã Carter (Hayley Atwell) de What If… sendo dividida ao meio pelo próprio escudo. A Capitã Marvel negra (Lashana Lynch) sendo esmagada sem piedade por uma estátua de pedra. O Senhor Fantástico, coitado, desintegrado em tiras como uma mera borracha. A única que me doeu foi a de Xavier, afinal é a segunda vez que o vejo sendo morto no cinema de maneira brutal, dessa vez com o pescoço quebrado durante uma tentativa de manipulação mental da cabeça de Wanda – mesmo assim, que cena fantástica!
O único sobrevivente dessa chacina é Mordo (Chiwetel Ejiofor), não coincidentemente o único personagem dali integrado ao cânone exclusivo do Doutor Estranho e que segundo o gancho do primeiro filme, era para ter sido o antagonista da continuação. Nesse sentido, Mordo parece subaproveitado na história, porque claramente o seu destaque de antagonismo foi jogado para frente, num eventual fechamento de trilogia; por consequência, a cena em que ele enfrenta Strange corpo-a-corpo soa deslocada, uma breve pincelada de uma rivalidade, que, na prática, existe somente em outro universo. Mesmo com esses fatores, ainda considero interessante como o roteiro utiliza-o para uma das várias cenas que manipulam e quebram a expectativa padrões dos caminhos da história. Ele aparece com pompa de vilão, mas dá um abraço acolhendo Strange no Sanctum Sanctorum, e, logo em seguida, dopa o mago, prendendo-o sob o pretexto dele ser a principal ameaça ao multiverso e não somente Wanda, como pensávamos naquele momento da história.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura Doutor Estranho no Multiverso da Loucura
Heroísmo de Loucuras
Apesar de estruturalmente simples, há várias dessas sacadinhas legais no argumento de Michael Waldron para subverter aspectos da “fórmula Marvel” como a falsa importância dos dispositivos narrativos, apresentando soluções mais criativas para as resoluções. O Darkhold é queimado ainda em posse de Wanda, dando-lhe o desafio de ter que subir uma montanha proibida com os feitiços do livro em hieróglifos protegidas de monstros, que, “inesperadamente” já esperavam sua chegada para servi-la. Vishanti, o livro colocado como o inverso do Darkhold e única forma de vencer Wanda é igualmente queimado sem nem chegar na posse do Doutor Estranho. E Raimi aproveita esses caminhos não óbvios a serem seguidos para potencializar a criatividade das soluções em verdadeiras catarses imagéticas.
Fora a própria batalha dos Illuminati, temos também a insanamente psicodélica luta de notas musicais entre os Doutores Estranhos e o épico clímax protagonizado por um Doutor Estranho zumbificado – existe algo mais Sam Raimi do que o plano do zumbi levantando da tumba pela mão com um raio caindo atrás? – controlando espectros demoníacos para cima da Feiticeira Escarlate. Há quem reclame que não há um longo embate frente a frente entre os dois, uma vez que o Doutor Estranho passa boa parte da história buscando meios de fugir de Wanda. Contudo, a proposta do filme é ser um slasher e em como todo bom slasher, quem derrota o assassino mascarado no final é a final girl, vulgo America Chavez.
Parece bizarro Strange abdicar de lutar contra Wanda na batalha final e dar a responsabilidade de derrotá-la para Chavez, que em nenhum momento treinou o controle de seus poderes para, no final, somente com um discurso motivacional conseguir controlá-los ao ponto de enfrentar Wanda de igual para igual. Contudo, vejo essa cena de maneira diferente. A força de Chavez é muito mais gerada por uma crença instintiva de acreditar (como o Strange realmente crê) que podia encontrar suas mães novamente pelo multiverso. Ela entende através de Strange que não é “uma filha que perdeu as mães” e com essa consciência, ensina para Wanda que ela nunca “perdeu” seus filhos e que eles sempre vão estar seguros com suas outras versões dela em quaisquer que sejam os universos.
É a quebra de egoísmo conjunta da trinca de personagens. Chavez deixa de se culpar pelo que aconteceu com as mães. Doutor Estranho deixa de tentar resolver tudo sozinho ao ponto de humildemente se curvar para Wong ao final, em respeito ao verdadeiro título de “Mago Supremo” e declarar abertamente seu amor e arrependimento para Christine – “Eu te amo em todos os universos”. Wanda enxerga a ilusão em que estava vivendo, vê que o que estava se tornando era um perigo para os filhos que tanto amava e desejava, reconhecendo seus erros e se sacrificando para destruir os Darkholds de todos os universos, impedindo que novas almas sejam corrompidas. Fechamentos dramaticamente potentes, heróicos e com consequências quase “reais”.
Se a última cena do filme realmente fosse o terceiro olho surgindo no Doutor Estranho, nesse “gancho” Evil Dead do mal do Darkhold ainda vivo dentro do personagem, a morte de Wanda ganharia ainda mais peso (pois, seria praticamente em vão) e o destino do multiverso em sempre corromper Strange iria atuar ‘sacanamente’ da mesma forma. Uma pena que Marvel precise fazer cena pós-créditos para descredibilizar esse final tragicômico, introduzindo a personagem Clea (Charlize Theron) vindo de um outro universo, chamando o Doutor Estranho para a denominada “Dimensão das Trevas” e provavelmente conseguir resolver esse problema do terceiro olho (que ele aparentemente controla totalmente) e influência do livro por lá.
Por mim, só precisava colocar o sensacional pós-créditos finais, em que Bruce Campbell fecha seu cânon (a participação do ator é absolutamente necessária em todo filme de Sam Raimi, NÃO É SÓ FANSERVICE GRATUITO PARA OS FÃS DO RAIMI!! HAHA) quebrando a quarta parede com aquele zoom brega em cima de seu rosto falando “It’s Over!”. Por sinal, se fosse para apontar/procurar mais “defeitos” no filme, eu questionaria porque o Raimi não fez a Wanda quebrar a quarta parede mais vezes? Aquela olhadinha que dá para câmera depois que conclui o feitiço de possessão para uma de suas versões do multiverso é simplesmente uma das coisas mais incríveis já feitas na Marvel!
Se pudesse pegar uma cena para resumir o filme, escolheria aquela na rede de tubulações da central dos Illuminati em que Wanda caça incessantemente Strange, Christine e Chavez. Em determinado momento na sequência, a perseguição pausa, o trio fica encurralado, o diretor prepara com cautela uma atmosfera de silêncio e os personagens angustiados com a iminente aparição de Wanda, aquele velho clichê das gotas de água caindo vai quebrando o silêncio aos poucos até a aparição surpresa do monstro, forçando o mago a tirar um feitiço da manga, abrindo um buraco no teto para inundar o local e achar uma saída que os salva momentaneamente.
A cena sintetiza a maestria na qual o diretor utiliza seu terror de origem para destacar o heroico que tanto acredita e entende. Por esse momento, podemos concluir que estamos SIM diante um filme AUTORAL dentro de uma Marvel que está SIM cada vez mais solta, que deu liberdade para Sam Raimi explodir loucamente as suas melhores características apresentadas nas trilogias (Evil Dead e Homem-Aranha) que fizeram seu nome na telona, renovando o entretenimento de herói julgado como playground superficial em CINEMA, profundo e eletrizante em sensações, imagens e estranhezas (com o perdão do trocadilho). Muito mais que um filmaço (e um dos verdadeiramente melhores) da Marvel, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é um filmaço com a assinatura de Sam Raimi.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness) – EUA, 2022
Direção: Sam Raimi
Roteiro: Michael Waldron
Elenco: Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen, Chiwetel Ejiofor, Benedict Wong, Xochitl Gomez, Michael Stuhlbarg, Rachel McAdams, Jett Klyne, Sheila Atim, Julian Hilliard, Adam Hugill, Ako Mitchell, Momo Yeung, Daniel Swain, Topo Wresniwiro, Eden Nathenson, Vinny Moli, Charlie Norton, Hayley Atwell, Lashana Lynch, Charlize Theron, Bruce Campbell,
John Krasinski, Ruth Livier, Chess Lopez, Anson Mount, Patrick Stewart
Duração: 126 min.