Millie Bobby Brown “nasceu” com Stranger Things nos braços do Netflix e, desde então, apenas com uns desvios aqui e ali, parece uma filha dedicada ao streamer, partindo para viver Enola Holmes nos até agora dois filmes da série e, sem perder tempo, protagonizar Donzela, um “filme de princesa” com paisagens de contos de fada, castelos e dragões que pode muito facilmente ser o começo de uma nova franquia audiovisual. Não que ela não deva garantir o pagamento de suas contas com essa garantia de emprego e de bons cachês, mas, considerando que a jovem já demonstrou talento, seria muito bacana se ela conseguisse quase que literalmente sair de sua zona de conforto e fazer algo realmente desafiador, pois Donzela não é, definitivamente, nada especial, ainda que, pessoalmente, eu tenha gostado muito do filme.
O que o longa dirigido por Juan Carlos Fresnadillo (Extermínio 2) oferece de valor poderia, há muitos anos, lá pela época do lançamento de Shrek (isso se eu não for ainda mais atrás, com A Princesa Prometida, claro), ser considerado inovador e subversivo, mas, hoje em dia, pegar a fórmula dos contos de fada e virá-la de cabeça para baixo ou empregar uma abordagem feminina para as histórias, já não é algo tão diferente quanto o roteiro de Dan Mazeau (Fúria de Titãs 2) acha que é. Ao contrário até, trata-se de um bem-vinda normalização que contribui para que estereótipos bobalhões de gênero sejam derrubados, um tijolo a cada vez, cabendo, então, tentar discernir o que afinal de contas faz de Donzela algo que, para mim, valeu a experiência.
Na história, Millie Bobby Brown vive Elodie, filha de um regente de uma terra fria e empobrecida que recebe uma proposta de casamento com o príncipe do reino de Áurea, comandado pela Rainha Isabelle (Robin Wright, em uma escalação perfeita que remonta ao citado A Princesa Prometida). Com o objetivo de salvar seu povo da fome, ela aceita e sua família, então, parte para o rico e belíssimo reino que é o arquétipo dos reinos mágicos de fábulas, com paisagens verdejantes, uma profusão de flores e uma população que é só sorrisos e agrados. Mas, como no prólogo vemos um rei e seus soldados sendo exterminados por um dragão centenas de anos antes dos eventos do longa, não há segredo algum quando essa visão paradisíaca de um casamento arranjado é completamente apagada com Elodie sendo sacrificada para o tal dragão, como parte de um ritual que acontece a cada geração.
Se a atuação de Brown se resume, em grande parte, a gritar e a se esconder atrás de pedregulhos, o que cerca essas escolhas equivocadas de roteiro que subutilizam a atriz funciona muito bem. Para começo de conversa, o dragão – ou melhor, a “dragoa” (olha o Shrek aí, gente) – tem um design excelente que ganha um banho de CGI altamente competente e, mais importante do que tudo isso, conta com um trabalho de voz de Shohreh Aghdashloo (a Chrisjen Avasarala, de The Expanse) que rivaliza os de outros dragões falantes memoráveis do cinema, como o Mushu de Eddie Murphy em Mulan, o Draco de Sean Connery em Coração de Dragão e o Smaug de Benedict Cumberbatch naquela trilogia ruim de doer. A atriz irano-americana empresta sua característica voz rouca que carrega o irresistível sotaque de seu país natal e cria uma personagem sem nome que encanta imediatamente, reunindo ameaça e charme como em um passe de mágica.
Outra decisão narrativa muito boa é fugir do óbvio, que seria fazer Elodie retornar rapidamente para Áurea para se vingar de seus algozes. Isso acontece, obviamente, mas grande parte do filme se passa dentro da montanha onde a “dragoa” vive, o que permite boas oportunidades aventurescas do roteiro, sem jamais deixar de salientar e usar o lado sombrio, ou seja, sem jamais realmente fazer de Donzela um daqueles contos de fada sanitizados. Não estou falando, aqui, de violência explícita, pois isso o filme não tem (e não precisa), mas o sugestionamento da violência que não vemos, assim como a manutenção das personalidades no mínimo ambíguas de quase todos os personagens contribui para que o longa não se traia muito facilmente. Além disso, há bons momentos de efetiva subversão de clichês narrativos do gênero como, por exemplo, quando vemos o desfazimento do “vestido de princesa” de Elodie ser usado para criar armas e instrumentos de proteção no melhor estilo MacGyver.
E, claro, como já dei os exemplos de Wright e Aghdashloo, o elenco veterano é ótimo e muito bem escalado, com esses dois nomes sendo acrescidos de Ray Winstone e Angela Bassett, que vivem o pai e madrasta de Elodie. Não são participações de vulto, claro, pois o destaque vai todo para Brown e para o dragão, mas a mera presença deles eleva o que poderia ser meramente trivial, para algo que chama atenção.
Mesmo com esses diversos pontos positivos, o filme peca de verdade – para além de subutilizar a protagonista, reduzindo-a a alguém que somente intercala cara de dor com cara de raiva – na falta de comprometimento, no mergulho efetivo na mitologia que cria e que acaba ficando na superfície. De certa maneira, isso é culpa do miolo do filme passado integralmente no interior da montanha e sim, eu sei que eu elogiei essa escolha, mas isso não preclui minha afirmação de que o que está ao redor é mal desenvolvido, seja o início que, para ao mesmo tempo afirmar que Elodie é forte e bondosa, precisa mostrá-la rachando toras de madeira com um machado para distribuir para seu povo, seja o final, em que tudo acontece em um piscar de olhos muito conveniente e passivo demais, do tipo “eu voltei e vocês se ferraram”. Faltou equilíbrio e, também, um pouco de coragem para sair da mera inversão de papeis.
Mas, como disse logo de início, gostei muito de Donzela, mais até do que minha crítica e minha nota deixam entrever. Trata-se da boa e velha diversão descerebrada que, porém, não parece ser algo costurado de qualquer jeito para enganar desavisados, mas sim uma obra que claramente tem um potencial que, mesmo não realizado integralmente, entrega pelo menos uma aventura fabulesca de tons sombrios com um dos melhores dragões do audiovisual e uma sombra de Ellen Ripley que teima em atrapalhar os planos fumegantes do bicharoco. E podem ter certeza de que, se houver Donzelas: O Resgate, estarei lá no meu sofá com um balde de pipoca na mão!
Donzela (Damsel – EUA, 08 de março de 2024)
Direção: Juan Carlos Fresnadillo
Roteiro: Dan Mazeau
Elenco: Millie Bobby Brown, Ray Winstone, Angela Bassett, Robin Wright, Shohreh Aghdashloo, Brooke Carter, Nick Robinson, , Milo Twomey, Nicole Joseph
Duração: 110 min.