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Crítica | Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado

por Leonardo Campos
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Ao publicar Dona Flor e Seus Dois Maridos, em 1966, Jorge Amado já era um escritor popular. A sua relação com a crítica especializada nunca foi das melhores, mas o autor conseguia cativar o público e se tornar rentável a cada romance lançado. Só com o romance em questão foram 75 mil exemplares esgotados em pouco tempo. Num país acusado de ter “consumidores e cidadãos” adeptos da Síndrome do vira-lata, termo cunhado pelo ácido dramaturgo Nelson Rodrigues, o baiano Jorge Amado precisou de paciência para ver a sua extensa produção valorizada em diversos circuitos, entre eles, o mais psicologicamente complexo, o meio acadêmico, repleto de pesquisadores falaciosos e donos de verdades que às vezes nem eles mesmos acreditam.

Conhecido por não temer as críticas ao trilhar caminhos novos, Jorge Amado era um escritor que vivia exclusivamente da sua produção, o que incomodava bastante alguns circuitos intelectuais que pareciam não ter conhecimento da concepção de arte após a revolução industrial e o apagamento da “aura” que tanto Walter Benjamin discutiu em suas reflexões na Escola de Frankfurt.

Denominado como “fascinante e explicitamente populista”, “repleto da cotidianidade brasileiro”, “denso de sensualidade” e arauto da “exposição do poder das triangulações reveladoras de um país repleto de dilemas” como o Brasil, Dona Flor e Seus Dois Maridos é um retrato fidedigno das nossas contradições, tratada no romance de maneira sarcástica e bem humorada. Ao fazer um relato divertido das ambiguidades que formam a nossa identidade, a obra trata da nossa dual relação entre desejo e prudência, compromisso e prazer, alegria e seriedade, trabalho e malandragem, dentre outras questões que nos define enquanto povo.

O romance começa com o falecimento de Vadinho em pleno carnaval. Ao morrer subitamente, deixa viúva a sofrida Flor, mulher que precisava lidar constantemente com suas traições. Com momentos iniciais prosaicos, a obra cresce num sentido extremo e adentra pela trilha do realismo fantástico. No primeiro capítulo temos como destaque o velório de Vadinho, o enterro e uma breve análise panorâmica do seu entorno, com destaque para os seus companheiros boêmios.

Quando o segundo capítulo começa, somos mergulhados no luto de Flor, os momentos iniciais de sua viuvez, uma mulher envolta em suas memórias e saudades do relacionamento com Vadinho. No terceiro capítulo, o fim do sofrimento de Flor é transformado em esperança, pois a sua vida ganha novos rumos. Ela começa a sair com as amigas e desfrutar de uma vida que tenha o antigo marido apenas nas malhas da memória. É uma fase de transição para o quarto capítulo, marcado pela vida dentro dos padrões: casada, Flor vive o sossego de sua relação “correta”, com equilíbrio emocional, financeiro e amoroso.

Tudo muda quando a batalha entre o espírito e a matéria surge para atormentar a sua vida. É quando o realismo fantástico se estabelece ao termos o espírito de Vadinho de volta do além, disposto a tornar a vida de Flor um caos. Apenas ela pode vê-lo. Quando ele descobre que pode fazer com ela o que podia fazer em vida, a “presença” decide fazer-se constantemente próximo da sua antiga amada. O que fazer? Manter-se fiel aos padrões ou desfrutar dos desejos carnais?

Compreender este romance é estar atento ao desenvolvimento dos personagens, em especial, o triângulo amoroso formado por Flor, Vadinho e Teodoro. Sem profundidade psicológica, mas repletos de peculiaridades importantes para o desenvolvimento da narrativa, os seres que circulam por esta fascinante trama sobre o dualismo entre desejo e prudência representam bem a proposta elaborada pela obra.

Creio que seja mais importante começar por Flor, o centro nervoso do eixo. Ela carrega em si a dualidade entre a santa e a prostituta. Intitulada Florípedes Paiva, a personagem foi criada por Jorge Amado tendo como base uma história real de uma viúva que se casara novamente, mas que ainda desejava seu antigo marido, acontecimento que ressurgiu no fundo da sua memória enquanto buscava elementos para estruturar o romance. Descrita como “pequena, e rechonchuda, de gordura sem banhas, bronzeada com olhos de requebro, lábios grossos um tanto abertos”.

Com atitudes corajosas, próximo ao final da história, Flor vai reverter a tradição romântica de morte para mulheres que descentralizam os padrões familiares. Devemos lembrar que em diversos momentos, as mulheres não foram liberadas de suas transgressões: Anna Karenina, de Tolstoi; Luísa, em O Primo Basílio, de Eça de Queirós; Emma, em Madame Bovary, de Flaubert; Madalena, em São Bernardo, de Graciliano Ramos; Dona Sinhazinha, em Gabriela Cravo-e-Canela, e Ester, em Terras do Sem Fim, ambas, criações do próprio Jorge Amado, mulheres que não sobreviveram às pressões sociais e tiveram que ser punidas por seus comportamentos ditos inadequados.

A infidelidade era vista pelo olhar cômico na tradição teatral, como por exemplo, algumas farsas de Molière. No bojo do gênero literário romance, como apresentado no breve panorama, as mulheres não podiam finalizar as suas trajetórias questionando valores e hipocrisias sociais. Reivindicar era até possível, mas a igualdade de direitos perante aos códigos do machismo era algo inconcebível, basta se lembrar de Aurélia Camargo, em Senhora, de José de Alencar, uma mulher que apesar de ousada, precisou ceder ao final. Há relatos de que Flor iria morrer nas primeiras decisões de Jorge Amado, tendo em vista leva-la para o “além” com o antigo marido, no entanto, o escritor declinou e preferiu deixar a personagem bem “a cara do Brasil”, um país repleto de contradições.

Essa postura conflituosa e que sucumbe ao final é o comportamento ideal para o malandro Vadinho, personagem inspirado em um antigo amigo de Jorge Amado que era, na juventude, um “perdedor de dinheiro”, mas um “ganhador de mulheres”. Jogador, Vadinho é um tipo repleto de vícios. Homem descrito pelo narrador como alto, de pele morena, bigode cortado e cabeleira loira. Waldomiro Guimarães, seu nome de batismo, é a representação pura do malandro brasileiro que habita nosso imaginário cultural. Sem padrão de família para se guiar, haja vista a morte da sua mãe no parto e o desaparecimento de seu pai, Vadinho tinha como lema uma “vida de amantes”, boemia e prazer, num dos personagens mais “carnavalizados” da história literária brasileira.

Teodoro, por sua vez, é justamente o oposto. Pudico e cerimonioso, o personagem traduz o ideal de homem santo, responsável por sustentas “a moral e os bons costumes” e manter estabelecido o padrão tradicional de família. Pacífico e amável, Teodoro fez faculdade, tornou-se um farmacêutico respeitado na região e elogiado por ser um homem série, monógamo e que sequer consegue desviar os olhos para outras mulheres, nem mesmo para Dona Magnólia, mulher que constantemente se oferece através de roupas extravagantes e insinuações sexuais. Padronizado até no cotidiano domiciliar, para Teodoro, apenas nas quartas e sábados a sua esposa podia desfrutar da sua disponibilidade para “amar”.

Além destes personagens e dos diversos coadjuvantes, gravitam em torno da narrativa os “reais” Dorival Caymmi, Pierre Verger, Mestre Didi, Silvio Caldas e Carybé. Entre os diversos temas, o romance trata da relação de complemento entre o sexo e a comida. Em Dona Flor e Seus Dois Maridos o ato sexual é tratado como uma necessidade dos homens e mulheres e que deve ser consumido para a ideal sobrevivência. A discussão se aproxima das reflexões de O Canibalismo Amoroso, do ensaísta Affonso Romano de Santana, autor que observa em Dona Flor e Gabriela a arte de “cozinhar e amar como duas atividades complementares, uma vez que ambas são imbatíveis na cozinha e na cama”.

Para narrar a sua história, Jorge Amado faz uso de numerosos paratextos plásticos e musicais, tais como xilogravuras, músicas e outros recursos visuais descritos no romance numa estratégia de intensificar as vozes dos personagens. Modinhas, serenatas, cantigas de roda e de ninar são alguns destes recursos. Ao longo de suas 476 páginas, o escritor faz um extenso painel da vida baiana nos anos 1940, tendo a crônica como guia de estilo, com direito a detalhes preciosos de Salvador. Rituais de candomblé, cassinos, bares, cabarés, dentre outros circuitos estão presente através de descrições pormenorizadas da cultura local, numa narrativa que também dá conta de tratar com humor os relacionamentos cotidianos entre doutores, artistas, prostitutas, malandros e políticos.

Adaptado para diversos meios semióticos, Dona Flor e Seus Dois Maridos fez sucesso no cinema em 1976, tornando-se uma das maiores bilheterias da história da indústria cinematográfica brasileira. Em 2017, ganhou outra adaptação, tratada como “politicamente correta” por alguns críticos. Na televisão já foi minissérie da Rede Globo, além de ter sido levada para o teatro, música, pintura e xilogravura. Um dos mais famosos romances de Jorge Amado, a obra ganhou ressonâncias internacionais e ajudou na calcificação dos estereótipos de mulher baiana e brasileira que habita o imaginário de muitos estrangeiros quando se trata de cultura e representação da mulher brasileira.

Em Dona Flor, Jorge Amado “canta” com muita paixão sobre a sua terra, a Bahia, região alegórica “pintada” com toques de realismo fantástico e tons picarescos. Tendo como pano de fundo a liberdade sexual e a crítica social da sua fase anterior, com este romance, Amado mergulha no lirismo e amplia as suas possibilidades narrativas. Em suma, uma obra em que trafega por uma via repleta de elementos folhetinescos fincados em diversos textos da cultura popular baiana e brasileira.

Dona Flor e Seus Dois Maridos (Brasil, 1966)
Autor: Jorge Amado
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 476.

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