Entusiasmo. Essa foi a palavra-chave quando soube da existência de uma nova versão para o cinema do clássico moderno Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado. Entre as idas e vindas da nossa agitada vida contemporânea, o filme acabou ficando para depois. Não foi contemplado numa sala de cinema e, recentemente, no streaming, foi ainda encarado com uma postura bastante entusiasmada, apesar de se revelar decepcionante logo em seus primeiros instantes. Com um amplo universo de histórias e personagens marcantes sobre a construção da nacionalidade brasileira, o escritor baiano forneceu para realizadores de artes em outros campos semióticos um painel gigantesco de possibilidades para traduções. Em 1976, Bruno Barreto conquistou o público em sua versão com Sônia Braga e se tornou o maior sucesso de bilheteria de nosso cinema, mantendo a posição ao longo de muito tempo. Agora, em 2017, Pedro Vasconcelos retoma a história, assinando também o roteiro. Ele entrega um filme divertido, autêntico em muitas passagens, mas carregados de alguns problemas que não chegam a estragar o resultado completamente, mas compromete. E bastante.
Entre a ordem e a desordem, numa manifestação literária que dialoga com a Dialética da Malandragem, clássico ensaio do crítico literário Antonio Candido, o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos, bem como as suas versões audiovisuais, apresentam a seguinte estrutura narrativa: depois da morte de Vadinho, um malandro baiano cafajeste e machista, a cozinheira Florípedes casa novamente, desta vez com Theodoro, um homem “bem apessoado”, direito, ético e com tudo cronometrado em sua jornada diária, até mesmo o horário de se relacionar sexualmente. Ela leva a vida que toda mãe sempre sonhou para a sua filha. Dá as suas aulas de culinária, mora num local confortável, tem a segurança de um homem fiel, mas sente saudades dos chamegos e do florescer da sexualidade, algo que só Vadinho sabia conduzir.
Assim, neste misto de realidade e fantasia, o morto reaparece para atormentar os seus dias. Só ela o enxerga. Brincalhão, safado e sempre despido, o personagem ronda a mulher insatisfeita sexualmente. É neste tormento, entre lidar com a ordem representada por Theodoro e a desordem, representada por Vadinho, que Flor leva os seus dias, ora se entregando ao pecaminoso, ora se repreendendo diante dos seus desejos. Com muitas discussões interessantes sobre características da cultura popular de um país miscigenado, o filme toma o romance como ponto de partida e o “respeita” na medida do possível, mas falha pela artificialidade da narrativa, em especial, num setor muito importante para a estrutura estética no cinema: a direção de fotografia. Luciano Xavier, responsável por registrar a empreitada de Pedro Vasconcelos, nos entrega planos, movimentos e quadros muito desconectados com a trama, numa proposta de iluminação que tem os seus princípios artísticos, mas que infelizmente não funciona.
Ademais, falando em problemas, considero a representação religiosa de matriz africana também confusa, trabalhada em cima de uma proposta mais característica da demonização estabelecida pelo cristianismo do que necessariamente uma leitura visual dos aspectos da umbanda. A atualidade da misoginia, um tema muito polêmico e necessário para discussões no âmbito da arte também é tratado com sem vigor. Ao passo que o roteiro constrói Vadinho, se esquece de desenvolver melhor o outro lado da história, tornando o malandro um homem aceitável, mesmo diante de suas condutas repreensíveis. Com uma trilha sonora agradável, tipicamente baiana e coligada com o panorâmico cenário criado por Jorge Amado, o filme é como uma das teorias mencionadas anteriormente: trafega entre a ordem e a desordem. Na ordem, temos os desempenhos dramáticos de alguns membros do elenco. Na desordem, temos como exemplo, a longa e exaustiva cena de abertura, exageradamente esticada, quebradora de ritmos narrativos.
Ao longo de seus 108 minutos, Dona Flor e Seus Dois Maridos brinca com o amplo leque de Jorge Amado: humor e crítica social andam em paralelo, mas erra também ao trazer uma versão muito amena de Vadinho, aqui interpretado pelo ótimo desempenho de Marcelo Faria, ator que brilhou nos palcos teatrais com a adaptação do romance, espetáculo que tive a oportunidade de contemplar na época de sua montagem. Juliana Paes, como Dona Flor, parece a única a ter compreendido de fato a proposta do filme, nos entregando um desempenho muito inspirador, carismático e envolvente. É bacana ver a sua entrega e desafio, principalmente pelo legado e impacto cultural da personagem na pele de Sônia Braga. Leandro Hassum, um competente ator do ramo da comédia, entrega uma variação de seus outros papeis, focado na perspectiva humorística rígida, com posição de alívio cômico constante, muito repetitiva, nalgumas vezes, irritante. A cenografia de Carolina Britto e os figurinos de Valeria Stefanni, por sua vez, cumprem as suas devidas funções estéticas, insuficientes para resolver os demais problemas desta simpática, mas morna versão de um clássico literário bastante apimentado
Dona Flor e Seus Dois Maridos — Brasil, 2017
Direção: Pedro Vasconcelos
Roteiro: Pedro Vasconcelos (baseado em romance de Jorge Amado)
Elenco: Juliana Paes, Marcelo Faria, Leandro Hassum, Duda Ribeiro, Maria Gal, Nívea Maria, Ana Paula Bouzas, Roberta Santiago, Marco Bravo, Prazeres Barbosa
Duração: 117 min