Novela originalmente publicada no periódico O Contemporâneo, em 1856, Dois Hussardos é uma “história no espelho“, onde o autor conta a aventura de um pai e um filho, dois condes, membros da companhia militar dos hussardos russos (uma cavalaria ligeira) que visitam a mesma aldeia (abreviada como “K.”) num espaço de vinte anos, aproximadamente entre 1828 e 1848. O nome original da obra seria Pai e Filho, mas foi alterado por sugestão de Nikolai Nekrasov, editor do periódico onde a novela foi publicada. E faz sentido, a mudança. O título Dois Hussardos foca em algo impessoal (um posto militar), em vez de numa relação de parentesco, o que combina com a relação praticamente inexiste entre o Turbin pai e o Turbin filho; um legado caracterizado pela vergonha do rebento frente às lembranças do pai, e pelas histórias que o jovem tem que ouvir e sorrir de maneira acanhada, mal disfarçando seu desconforto diante da “imoralidade ancestral“.
No ótimo posfácio que Italo Calvino escreveu sobre o livro — e que consta na versão lançada pela Editora 34 –, é sugerida a possibilidade de o autor guardar uma aproximação pessoal com uma dessas linhas narrativas (o passado), e esta é uma observação com a qual eu concordo plenamente. Como o enredo de Dois Hussardos foi construído na oposição entre costumes do início e de meados do século XIX, o espelho dramático entre as Eras que Lev Tolstói apresenta, acaba sendo uma maneira interessantíssima de dissecar um conflito de gerações. O autor exibe variações muito distintas do espaço geográfico, das características culturais e da mentalidade social em ambas as linhas do tempo, terminando por jogar nas costas da geração mais avançada o peso comparativo e a responsabilidade de “fazer melhor”. Não há, porém, uma ordem para isso. O autor entende que cada geração vive a vida de maneira diferente. Mas também não esconde que essas “diferentes formas de viver” parecem absurdas para olhares alguns anos mais velhos. Nós que o digamos.
Tolstói não esconde a sua percepção em relação à Rússia de gerações tão próximas no tempo, mas tão distantes em forma de viver a vida. Contudo, esse olhar nostálgico, acalorado e até ingenuamente positivo que ele direciona ao passado, não é sinônimo de defesa pura das barbáries e exageros dos personagens daquela época. Ele apenas olha com saudade para os anos 1820, enquanto sua visão para os anos 1840 é de que tudo se tornou mais patético, sem vida, sem cores e sem graça. O texto nos passa essa impressão através das escolhas do autor ao descrever lugares e ao compor o jogo de ação e reação das pessoas. Incluem-se aí também o clima, as casas, os namoros, os jogos de cartas e toda a dinâmica social na aldeia de K.. Há um intenso contraste ético, moral e civilizacional entre o extrovertido, violento, impulsivo, apaixonado e (paradoxalmente) compassivo Fiódor Turbin e seu apático filho.
Obras literárias sobre conflitos geracionais, especialmente na esfera dos hábitos e da mentalidade, são uma interessante forma de nos fazer refletir sobre a nossa própria geração e aquela que nos educou. Em Dois Hussardos, Tolstói olha com desconfiança para o jovem polido, mas sacana às escondidas, enquanto parece entender — mas não desculpar — os “abertamente bárbaros” do passado. Vemos aqui duas versões de masculinidade e de relação dos protagonistas com as pessoas em volta, tanto no campo muito íntimo (o amor) quanto no campo dos encontros casuais (os ciganos, os jogadores de cartas) e das relações mais próximas por alguma instituição (o ulano, o alferes, os empregados). É um livro que se inicia com uma profusa quantidade de detalhes sobre uma época, e termina de maneira quase patética, demonstrando a anemia de muitas relações interpessoais, e como o ambiente nos molda e orienta as nossas ações cotidianas. Uma obra excelente para iniciar um debate sobre o entrelaçamento das gerações, sua socialização e sua construção como grupo de pessoas.
Dois Hussardos (Два гусара / Dva Gussara) — Rússia, 1856
Autor: Lev Tolstói
Publicação original: Sovremennik / Современник #5
Edição lida para esta crítica: Editora 34 (2020)
Tradução: Lucas Simone
Posfácio: Italo Calvino
96 páginas