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Crítica | Dois Generais

História familiar. História de guerra.

por Luiz Santiago
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Relatos pessoais e familiares em contextos de grande crise ou de guerra tendem a acrescentar novas camadas de entendimento sobre o período retratado e, se bem escritos, podem incrementar a reflexão do público a respeito do recorte histórico apresentado. É isso que acontece em Dois Generais, obra de Scott Chantler lançada em 2010, e que chegou ao Brasil em 2022, pela editora Tortuga. A trama é baseada nos diários, fotografias e cartas de Law Chantler, avô do roteirista e desenhista do quadrinho. Law era um oficial do serviço ativo da Infantaria Ligeira das Terras Altas Canadense, que lutou em uma série de grandes operações realizadas pelos aliados na Normandia, em 1944.

Mas o texto não se resume apenas a retratar a vida deste militar. A costura é ainda mais interessante e possui um peso de intimidade maior. Juntamente com Law, acompanhamos os passos de Jack, seu melhor amigo. Essa relação é exposta com grande beleza, mostrando a particularidade da amizade entre os dois oficiais, e como a vida, os deveres e a guerra conseguiram dar um rumo diferente a essa relação fraterna. A presença do poema Elegia Escrita num Cemitério Campestre, de Thomas Gray, ajuda a firmar o filtro emotivo e solene do texto, mostrando que ainda há maneiras inteligentes e interessantes de narrar eventos da 2ª Guerra Mundial sem apelar para o melodrama fácil ou apenas para uma exposição mais ou menos coesa de uma campanha militar. A trama criada por Scott Chantler vai além desses cacoetes simplistas e realmente investe em algo com grande significado.

Law é um personagem que chama a nossa atenção desde os primeiros quadros. O texto o retrata como alguém que se importa com os outros, que leva o seu ofício muito a sério, mas que nunca perdeu a oportunidade de se divertir, de demonstrar carinho às pessoas de quem gosta e de aproveitar as chances que a vida lhe deu para criar boas memórias e… viver. Talvez o ponto mais inesperado em Dois Generais seja justamente esse encaminhamento do autor, trazendo humor, leveza e anedotas das companhias militares canadenses (retiradas das cartas e diários de Law). Como já comentei, isso dá ao contexto real um caráter diferente. O filtro com o qual vemos esse momento muda, e ficamos apegados às pessoas, ficamos felizes ao descobrir que, em meio ao inferno, algumas pessoas conseguiram criar condições de vida um pouco mais suportáveis (a adoção dos animais das fazendas é um grande exemplo disso), mesmo na linha de combate contra os nazistas.

Mas em meio a todo esse trajeto familiar, existem também tocantes cenas de mortes e ataques das tropas alemãs contra os aliados (um dos mais marcantes, mostrados no final do volume). E como estamos falando de um drama pessoal, ver esses indivíduos se prepararem por um tempo e, depois, acompanhá-los em campo, morrendo aos montes, não é algo fácil. A arte de Scott Chantler também tem um papel ímpar na representação dessas cenas definitivas. Seu estilo em linha clara, o uso de cores-filtro, com destaque para o vermelho em cenas de massacre — ou nos soldados que morrem ou que vão morrer — tornam a leitura viva, adicionando expectativas para o leitor, sobre o que ocorrerá nas cenas seguintes.

Dois Generais é uma aventura cheia de sentimentos contrastantes. Nós rimos e choramos, ao passo que aprendemos sobre o cotidiano de alguns soldados aliados na Normandia, em 1944, mas gostaríamos de não ter conhecido a tragédia que se seguiu à maior parte dessas vidas, dessas histórias humanas. A mágica de tudo isso é a constatação um pouco egoísta, mas realista e até necessária para os que ficaram: a vida segue. E é necessário viver, criar, amar, deixar algo vivo quando partir; uma memória, uma arte, uma amizade ou alguns corações que irão se importar quando não estiver mais aqui. No fim, Dois Generais é uma reflexão sobre a vida, tendo, como ponto de partida, um dos momentos mais mortais da nossa História.

Dois Generais (Two Generals) — Canadá, 2010
Roteiro: Scott Chantler
Arte: Scott Chantler
No Brasil: Editora Tortuga, 2022
Tradução: Jotapê Martins
152 páginas

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