Ah, como é bom ler uma novelização que, mesmo empregando uma boa quantidade de mudanças e adição de cenas em relação ao que vemos no arco televisionado, não se afasta da ESSÊNCIA do original, como fez o incauto David Whitaker na versão de The Daleks para a Target Books! Tanto que eu abandonei o livro no meio do terceiro capítulo, porque senti como se estivesse lendo um reboot de Doctor Who feito por um produtor que passou muitos anos de sua vida assistindo a melodramas de baixa qualidade. Por isso que, quando peguei o volume de The Edge of Destruction, escrito por Nigel Robinson (originalmente oferecido a Stephen James Walker), estava muito apreensivo. Eu faço parte daquele time de whovians que tem a mente mais aberta possível para variações na linha do tempo da série, e que está disposto a interpretar, desde que haja um sentido dramático e lógico para isso, mudanças entre narrativas. Mas como tudo na vida, há sempre um limite para isso. E esse limite é, sem sombra de dúvidas, a alma da criação artística.
O que David Whitaker fez em The Daleks foi desrespeito a um momento muito importante do show. Ele mudou 100% a forma como Ian e Barbara se conheceram, como conheceram Susan e como encontraram e começaram a andar com o Doutor! Ou seja, jogou no lixo o episódio de estreia da série. E o pior de tudo? Em uma novelização. Novelizações são abertas a mudanças sim, e é muito legal que algumas passagens sejam alteradas com base em um pano de fundo que respeitosamente exibe coisas diferentes. Todavia, a condição para que isso aconteça é a manutenção daquilo que dá o real sentido à obra que o livro noveliza! Pois bem. Passado o pesadelo com The Daleks, eu cheguei a The Edge of Destruction e fiquei muito feliz com o que o autor fez na obra. A trama começa alguns minutos depois da saída de Skaro, com o Doutor tentando retomar o controle da TARDIS e levar Ian e Barbara de volta para casa. É textualmente explicitado que ele não confia nos professores de Susan, e há uma forte animosidade no ar, principalmente por parte do Doutor, que é orgulhoso, frio e birrento; ficando ainda mais durante os eventos dessa saga.
Para quem leu a minha crítica do arco original, sabe o quanto eu sou fã dessa história. O texto original de David Whitaker (sim, o mesmo que eu destruí algumas linhas atrás) é genial, mostrando como o retorno da TARDIS para a origem do Universo poderia afetar os tripulantes, física e psicologicamente. Uma das mudanças que Robinson fez aqui foi justamente de espaço-tempo, já que na novelização a TARDIS retorna até a formação da Via Láctea, não para o Big Bang. No contexto criado pelo autor, isso faz total sentido, e a base de consequências para todos os personagens é exatamente a mesma que vemos na TV. Por ser uma aventura claustrofóbica, passando-se inteiramente dentro da nave, o leitor tem uma impressão de “drama de câmara“, ou mesmo de “teatro” muito grande. É uma impressão curiosa para a dimensão do que está acontecendo, e o autor sabe aproveitar o que essa ambientação possibilita, explorando ainda mais a personalidade dos personagens envolvidos. E claro, o Doutor é o real foco de transformação.
Se em An Unearthly Child vimos a semente da sociabilização do personagem (e esta é realmente a palavra), aqui em The Edge of Destruction, depois de uma provação particularmente muito tensa, com ele acusando Ian e Barbara de sabotagem e querendo jogá-los pra fora da TARDIS, em pleno vazio do espaço (se ele realmente faria isso eu não sei, mas que o 1º Doutor chegaria ao limite, ao menos para arrancar informações dos dois, eu não tenho dúvidas), vemos o primeiro fruto das boas relações surgir. Aqui, a cena de desculpas do Time Lord para Barbara é bem maior e muito mais emocionante. E a conversa deles se estende não apenas para as questões ligadas à hipocrisia, falta de sensibilidade e superioridade doentia do Doutor em relação aos humanos, mas também para o reconhecimento dele de que não estaria vivo se não fosse aquela professora de História ao seu lado. É a cena mais bonita do livro, e que coroa a obra mostrando como estar à beira da morte, no “começo do Universo“, mudou a perspectiva do Doutor para as coisas. Especialmente porque todo o horror foi culpa dele, que travou o botão de “retorno rápido” ao sair de Skaro e não teve a sensatez de lembrar-se disso.
O autor enrola um pouco no meio do livro, colocando cenas de Ian e Barbara sendo ajudados pela TARDIS; mas eu não acho que seja uma enrolação negativa. Como ele retira cenas do convívio entre os tripulantes, era necessário colocá-las em outro lugar, e isso foi feito para incrementar a desconfiança do Doutor em relação aos humanos. No final, essa mesma premissa é utilizada para trazer outra transformação ao Senhor do Tempo: a noção de que a TARDIS tem sim uma consciência viva e uma forte sensibilidade, a ponto de querer conversar, a seu modo, com ele e com os outros, em momentos de crise.
A narrativa ainda faz o gancho correto com a aventura seguinte (Marco Polo), estendendo um pouco mais a permanência do grupo na TARDIS (com rápidas, mas bonitas cenas de sociabilização), antes de se materializarem na China, em 1289. Uma atmosfera de perdão, aceitação e boa convivência transborda nesse final de aventura. E mesmo que o 1º Doutor ainda mantenha a sua essência rabugenta e as suas patadas no trato com outras pessoas, ele certamente aprendeu muita coisa durante essa viagem. Dá-se, aqui, a sua primeira visível transformação após semanas de convivência com dois professores da Terra — e não é à toa que essa mudança tenha vindo após um contato com professores, não é mesmo? Aliás, é em aventuras como essas que entendemos um dos motivos pelos quais o Doutor precisa estar acompanhado. Sua personalidade necessita de alguém para puxar um pouco a corda. E talvez tenha sido nesse ponto que ele percebeu tal necessidade pela primeira vez.
Doctor Who: The Edge of Destruction (Reino Unido, 20 de outubro de 1988)
Target Novelisation #132
Autor: Nigel Robinson
Editora original: Target Books
Capa original: Alister Pearson
128 páginas