Quando anunciaram a volta de David Tennant e Catherine Tate ao universo de Doctor Who, só que desta vez, pela Big Finish, eu imaginei se tratar de uma pegadinha de muito mal gosto ou de um hoax feito por alguém sem coração, tamanha era a “impossibilidade” disso acontecer. Mas a BF provou que mantém um excelente diálogo com a BBC e conseguiu mesmo a autorização para utilizar o 10º Doutor e Donna em uma nova saga de aventuras inéditas. Além disso, a empresa logrou a autorização para a presença de vilões da Nova Série enfrentando os Doutores da Série Clássica e o uso do pessoal da UNIT da Nova Série em aventuras inéditas. Que excelente momento para ser um whovian!
Chamada de Tenth Doctor Adventures: Volume One, esta 1ª Temporada das aventuras do décimo Doutor conta com três episódios, todos eles estrelados por Tennant & Tate, uma dupla que prova o por quê conseguiu um lugar no coração dos fãs da série. Mesmo depois de tanto tempo, eles ainda são Donna e o Doutor.
Os três episódios deste volume foram lançados em 16 de maio de 2016 e ainda não há notícias de uma (obrigatória!) 2ª Temporada da série (escrevo esta crítica em 22/05). Abaixo, trechos da entrevista cedida por David Tennant e Catherine Tate logo após terminarem a gravação da 3ª e última aventura deste volume. Em seguida, vocês podem conferir as críticas separadas para cada cada um dos áudios.
Sobre a cronologia das aventuras para o 10º Doutor, é importante dizer que a tríade deste volume ocorre depois do episódio The Unicorn and the Wasp e antes do episódio Silence in the Library. No Universo Expandido, ela ocorre entre os quadrinhos The Greatest Mall in the Universe e Pawns of the Zenith (Battles in Time #49).
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SPOILERS
1X01: Technophobia
Equipe: 10º Doutor, Donna
Tempo: 2011
Espaço: Londres
Dois anos à frente do tempo de Donna são o bastante para o mundo parecer um lugar muito, muito diferente. Ao ouvir Technophobia, o episódio de abertura da série Tenth Doctor Adventures, temos a estranha sensação de “presenciar” o uso de “velhas tecnologias” a partir de um ponto de vista de quem já passou por elas. É como se nós fôssemos também viajantes no tempo, ouvindo um drama que mistura terror e medo de tecnologia moderna (tecnofobia é uma fobia real!) e percebendo que enquanto não nos impressionamos mais com esse tipo de criação, Donna, que ainda não tinha vivido aquilo, estava meio perdida.
O roteiro de Matt Fitton é simples na apresentação e muito eficiente na forma como brinca com os maneirismos da dupla, com a relação entre os dois, as brincadeiras, as confusões e alternância sempre interessante entre sincronia e dessincronia de ações — mostrando diferentes formas de enxergar um problema e como resolvê-lo –, culminando em mais uma confirmação de que a amizade e parceria entre o Doutor e Donna é algo inigualável.
O tom de humor não atrapalha a apresentação medonha do vilão que atormenta a cidade de Londres e faz com que todas as pessoas passem a ter medo de qualquer objeto tecnológico avançado. A direção de Nicholas Briggs (que também assina os outros três episódios) é inteligente, fazendo uma boa ligação entre o interior do London Technology Museum e o exterior urbano em pânico, correndo de computadores, telefones, carros. Cabe aqui uma citação especial à edição e mixagem de som do episódio, que é excelente, e à precisa Technophobia Suite, composta por Howard Carter, também compositor das outras duas trilhas do volume. Juntos, esses trabalhos sonoros acrescentam o elemento principal da história, que é fazer o espectador acreditar no desespero e problemas que esse tipo de vilão — e sua alteração da percepção humana para a tecnologia — pode fazer.
Mas apesar de serem interessantes em conceito e ações, os Koggnossenti são o ponto mais fraco do episódio. Eu entendo perfeitamente a escolha de Fitton em adotar uma linha mais humana em seu texto, com direito a surtos e pânico generalizado (algo esperado e necessário para esse tipo de enredo), mas deveria caber mais espaço, motivações e melhor inserção dos vilões na história. No início nós percebemos isso, mas a relação Doctor-Donna é tão boa que deixamos passar e esperamos que o inimigo ou a relação dos personagens com ele ganhe asas, o que não acontece. A resolução do problema é interessante, em certa medida, mas não carrega o enorme brilho dos desfechos malucos da era do 10º Doutor, principalmente pela forma como ele se despede e se livra da nova tecnologia em fase de experimentação.
A despeito dos tropeços com os Koggnossenti, Technophobia é uma ótima história, com uma dupla dinâmica capaz de nos fazer rir só pela forma como entoam as palavras e com um tema que se considerarmos por um breve momento a hipótese de acontecer, já nos causa um enorme pavor. Isso é Doctor Who.
Technophobia (Reino Unido, maio de 2016)
Direção: Nicholas Briggs
Roteiro: Matt Fitton
Elenco: David Tennant, Catherine Tate, Niky Wardley, Rachael Stirling, Chook Sibtain, Rory Keenan, Jot Davies
Duração: 70 min.
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1X02: Time Reaver
Equipe: 10º Doutor, Donna
Tempo: Indeterminado
Espaço: Porto Espacial Calibris
Diferente da aventura anterior, o Doutor e Donna estão aqui em um drama muito mais parecido com os episódios da 4ª Temporada do que em uma aventura solta do Universo Expandido. E com isso não estou minimizando o valor de Technophobia, nem nada. A questão é que ao ouvirmos esta Time Reaver, nos sentimos bem mais em casa, com temas, problemas e modus operandi do Doutor e Donna bem mais parecidos com os que eles tinham na TV. O resultado? Bem, uma história sensacional.
Enquanto o Doutor descrevia a sensação que era ser atingido por uma arma dos Time Reavers, eu imaginava a angústia que isso poderia causar em qualquer um. Imagine uma arma que você pode utilizar sozinho (como um viciado usa uma droga qualquer para “viajar por muito tempo”) ou ser atingido por ela (como punição) e cuja sensação, seja boa ou ruim, será sentida por você durante um longo período de tempo, enquanto, na realidade, apenas alguns minutos se passaram fora dessa bad trip.
O princípio teórico desta arma já havia aparecido sob outra perspectiva em City of Death, mas ali, para a pessoa ou qualquer outro ser vivo que estivesse dentro da “bolha”, o tempo externo passava com colossal lentidão enquanto, fora dela, tudo passava muito rápido, de modo que a destruição desse ser vivo demoraria apenas alguns segundos para quem observava, mas para o ser destruído, a coisa demorou eras para acontecer. Neste Time Reaver, o princípio é “corrompido” e adaptado e uma outra realidade, onde a percepção do usuário ou atingido pela arma muda, mas apenas para ele, não para os de fora. Eventualmente esta pessoa acabará morrendo, mas por estar sentindo uma única (e extrema) sensação “pela eternidade”. Como sempre, Doctor Who tem a capacidade de nos fazer temer tudo…
Donna é colocada aqui com uma participação mais efetiva, agindo de forma paralela e decisiva quando separada do Doutor e fazendo o que está ao seu alcance para ajudar Cora e tentar desmantelar a venda de armas de Time Reavers naquele lugar. Claro que a minha leitura para esta história passa, como já sinalizei, pela crítica ao tráfico de drogas e penso que esta tenha sido a intenção do autor também. A forma como esse comércio é feito, o vício e sensações mortais que causa nas pessoas e a tentativa da “ordem local” em exterminar, sem sucesso, a máfia de traficantes bate diretamente com a realidade que nós temos. Este foi um dos fatores que mais me fizeram gostar da história.
Destaco também a excelente introdução e boa finalização da trama, sem as reticências e sugestões que ficaram na outra história. Pesa aqui apenas o desenvolvimento do Doutor com a milícia oficial de Calibris, que toma um caminho no início mas logo em seguida muda e, no final, retorna ao primeiro objetivo, o que acaba ficando um pouco difícil entender o real motivo de seu contato… Embora incomode e comprometa um pouco a validação da organização local, isso não tira de Time Reaver o título de ótima (e macabra!) história.
Time Reaver (Reino Unido, maio de 2016)
Direção: Nicholas Briggs
Roteiro: Jenny Colgan
Elenco: David Tennant, Catherine Tate, Alex Lowe, Sabrina Bartlett, Terry Molloy, John Banks, Dan Starkey
Duração: 60 min.
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1X03: Death and the Queen
Equipe: 10º Doutor, Donna
Tempo: Indeterminado
Espaço: Reino de Goratania (País invisível, provavelmente na Europa)
Qualquer whovian que se preze, ao ouvir essa aventura, tem uma sensação de felicidade e cumplicidade ao constatar o que sempre soube: Donna é uma Rainha. O problema é que aqui ela tem a Morte (bem… pelo menos uma representação farsesca da Morte) como esposo, o que torna essa aventura uma peça de criatividade e tensão sem iguais no tempo em que o Doutor e Donna, Sua Majestade, viajaram juntos.
E devo dizer de início: que história sensacional! No início, não sem bem por quê, me lembrei do filme Rebecca – A Mulher Inesquecível, com o Príncipe Rudolph no papel que foi de Laurence Olivier e Donna no papel que foi de Joan Fontaine. O fato de se conhecerem na Riviera Francesa, a paixão quase imediata, os impasses para que o relacionamento se estabelecesse e então os problemas no castelo são basicamente elementos caros ao filme de Hitchcock e que aqui misturam ingredientes típicos da realeza europeia com os vilões interessantes de Doctor Who mais a relação do Doutor com algo que ele não sabe interpretar ou mesmo a sua dificuldade em se separar de um companion (algo que desde a 9ª Temporada da Nova Série eu passei a chamar carinhosamente de Complexo de Oswald).
Apesar de entender que as três aventuras desse volume da Tenth Doctor Adventures ocorrem em sequência uma à outra, a cronologia do ponto de vista do Doutor parece tomar algum tempo entre o encontro de Donna com Rudolph e a sua ida até o palácio. Há duas indicações disso na história — ótimas escolhas do roteirista James Goss para narrar a trama de forma alinear –, uma no início, quando o Doutor chega cavalgando ao local e diz que precisa falar com a rainha, e outra quando voltamos do flashback e percebemos que o Time Lord e a companion falam como se estivessem passado por um período de tempo separados. É possível que tenhamos, no futuro (nos quadrinhos ou na Big Finish) aventuras que narrem o que o Doutor viveu nesse espaço de tempo. Por hora, ficamos apenas curiosos.
A preparação para o casamento, os ataques dos Mephistols (vilões que possuem o melhor filtro de percepção do Universo, o que explica o nosso desconhecimento total em relação ao Reino de Goratania — e aqui quero fazer uma observação maldosa: não foi estúpido demais do roteiro colocar o príncipe falando que pertencia a um Reino que ninguém conhecia? Porque fica evidente que ele sabe que o Reino estava escondido!), o comportamento da Rainha Mãe e sua birra com Donna, tudo na história funciona a contento. Claro que nem tudo na colocação do cotidiano do Reino se dá em uma sequência precisa, mas certamente não há problemas de tratamento para os personagens e todas as situações fazem sentido dentro da história. Rudolph age de forma um pouco bipolar e chega até a dominar Donna em certo momento, mas depois volta ao “filhinho da mamãe” que parecia ser desde o início.
Fechando com chave de ouro o primeiro volume das Aventuras do 10º Doutor, Death and the Queen nos fala sobre acordos diplomáticos tenebrosos, sacrifícios questionáveis para não ser extinto, homens fracos e covardes e mulheres fortes e empoderadas. Um baita bofetão na cara para quem ainda acha que Doctor Who é apenas uma “série velha”, “machista” e “apenas diversão sci-fi”.
Death and the Queen (Reino Unido, maio de 2016)
Direção: Nicholas Briggs
Roteiro: James Goss
Elenco: David Tennant, Catherine Tate, Blake Ritson, Alice Krige, Beth Chalmers, Alan Cox
Duração: 60 min.